A Literatura da Distopia
publicado em artes e ideias por sergio coletto
Detalhe da capa de "A Revolução dos Bichos" (edição da Penguin)
Como vimos no já publicado A Literatura da Utopia, as tentativas de adequação do presente para alcançar uma sociedade perfeita acabaram por desencadear uma desordem na organização racional do mundo. Muitas vezes, fizeram-nos viver submetidos a valores distorcidos e no risco de uma eterna aceitação de fatores hostis que são meio para um fim que parece justificá-los: a perfeição.
Ao perceberem isso, autores como Aldous Huxley e George Orwell resolveram desconstruir os conceitos de utopia existentes. Segundo eles, a moralidade humana não conseguiria seguir uma evolução tão ligeira e, mesmo nos casos em que as sociedades perfeitas são alcançadas, a personalidade corrompida do homem colocaria tudo a perder.
As chamadas distopias podem ser entendidas filologicamente como "utopias negativas". Este neologismo foi cunhado por Gregg Webber e John Stuart Mill num discurso ao Parlamento Britânico em 1868: "É, provavelmente, demasiado elogioso chamar-lhes utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos, ou caco-tópicos. O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável."
Admirável Mundo Novo (fotograma do filme)
Na literatura, as utopias sempre possuem raízes no presente e são taxadas como o caminho ideal a ser seguido - mesmo que impraticável. Nas distopias, não há qualquer ligação com o presente: partem da utopia já alcançada. Nelas, os problemas atuais seguiram como que camuflados pela perfeição aparente e, a certo momento, eclodem da forma mais bruta. Estes romances geralmente são contados do ponto de vista de um personagem consciente imerso na estupidez coletiva. São explorados recursos como a coerção física e moral, o uso de drogas e robôs e o monopólio do conhecimento, todos agindo de forma direta na contenção social.
A atual idolatria ao gênero literário pode ser explicada pela crescente visibilidade da política esquerdista no âmbito contemporâneo. Vários dos autores desta "escola" foram ativistas políticos da oposição e deixaram claros seus fundamentos no pensamento Marxista. George Orwell, por exemplo, conviveu muito tempo com pobres e operários. Apesar de odiar os conflitos entre os partidos esquerdistas, dizia-se socialista e simpatizante de partidos anarquistas. Conseguiu se tornar um crítico de sua própria ideologia: suas magnum opus são 1984 e A Revolução dos Bichos (O Triunfo dos Porcos, em Portugal); na primeira retrata um regime totalitário que, através de constante supervisão e monopólio da História, constrói uma sociedade coletivista auto-punitiva; no segundo, uma sátira direta ao stalinismo mostra que o governo do Estado sempre será suscetível às fraquezas humanas, desmembradas pelo caráter sedutor do poder.
Admirável Mundo Novo (fotograma do filme)
Outros autores também levantaram questões que hoje se mostram mais presentes do que nunca. Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo - escrito num período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial -, descreveu um futuro hipotético onde estaríamos aprisionados pela obrigação de bem-estar, seja através da divisão social, do uso indiscriminado de drogas reguladoras ou do controle biológico - uma espécie de eugenia. Isso numa época onde tentativas de clonagem e fertilização in vitro não passavam de experiências fracassadas.
Anthony Burguess, em Laranja Mecânica (obra imortalizada no cinema por Stanley Kubrick, em 1971), via, num futuro indeterminado, que a predisposição humana à violência não acompanharia o ritmo da evolução intelectual, o que resultaria num colapso da sociedade e esdrúxulos e impositivos métodos de contenção psicológica desta característica "primitiva" baseados no Método Ludovico, uma espécie de behaviorismo radical levado ao extremo.
Laranja Mecânica (fotograma do filme de Kubrick)
Laranja Mecânica (fotograma do filme de Kubrick)
Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451 (adaptado com louvor por François Truffaut em 1966) formula um futuro onde a principal arma de opressão utilizada pelo Estado é a censura dos livros, o que faz da televisão o único (e manipulado) instrumento de informação e diversão. É um ensaio sóbrio (ainda que fantástico) sobre a censura e os limites entre entretenimento e alienação que meios de comunicação em massa devem respeitar.
Discutir os problemas sociais atuais através de romances satíricos muito bem elaborados foi o recurso que muitos autores utilizaram para chamar a atenção para os problemas que a eterna busca pela sociedade perfeita encara. Os já considerados clássicos da literatura moderna revolucionaram a forma como pensamos, enxergamos e lidamos com o destoamento da utopia para onde a sociedade caminhava. Há quem diga, inclusive, que já estamos inseridos em distopias tais quais nos livros.
Fahrenheit 451 (fotograma do filme de Truffaut)
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