Renato
Janine Ribeiro - O Estado de S. Paulo
12 Julho
2014 | 16h 00
Muitos viram na goleada a vitória da técnica sobre
o instinto, mas do futebol nunca se exclui a sorte
To kick. É fascinante que
brasileiros queiram ser hábeis usando os pés e não as mãos
Quase
todos os amigos que se interessam por analisar a política, inclusive os mais
pernas de pau, como eu, que quase tudo que sei é que impedimento não é a mesma
coisa que “impeachment”, estão discutindo nossa política à luz da Copa. Não é
um acaso. Durante o jogo do Brasil com a Alemanha, veio-me uma intuição: não há
atividade humana que ilustre tão bem a tese de Maquiavel sobre a virtù e a
fortuna quanto o futebol. Explico-me.
Para
Maquiavel, metade de nossas ações é governada pela fortuna, metade pela virtù.
A fortuna é fácil de entender: é o acaso, a sorte, favorável ou desfavorável.
Já a virtù, palavra que vem do latim “vir”, varão, designa o agir propriamente
viril, varonil, ou seja, tudo que vem de uma deliberação madura e atenta de
como agir. Assim, metade do que vivemos se deve à sorte ou azar, à fortuna ou
infortúnio, e a outra metade tentamos, a duras penas, que resulte de nosso
empenho, de nossa tentativa de pôr ordem - nossa ordem - na bagunça do
mundo.
A tarefa
humana, e sobretudo a do governante (que Maquiavel expõe em O Príncipe), é vencer
e ganhar. Mas, nisso, esbarramos no inesperado, no imponderável. Assim, o
Brasil se desenvolve, o que implica maior consumo de energia e d’água. E vem um
ano de seca, totalmente fora dos padrões! Isso afeta o abastecimento de
energia, responsabilidade do governo federal, e de água, que é do estadual. No
meio do planejamento, que é virtù, mete-se a fortuna, a atrapalhá-lo. Claro,
pode-se aprender com a lição - aumentando-se a oferta de energia, melhorando a
gestão da água. Ou: um de nós quer trocar de carro, faz contas, separa
economias e de repente adoece. Ou ainda, saindo dos casos de infortúnio para
passar aos de boa fortuna, alguém perde um emprego; não encontra nova
colocação; uma noite vai jantar em casa dos amigos, conhece uma pessoa que lhe
fala de novos rumos e descobre uma nova vocação. Dei exemplos radicais, mas
isso nos acontece todo dia. Somos bafejados pela sorte ou azar e fazemos nossos
cálculos: aí estão fortuna e virtù; e esses dois pelejam o tempo todo; o que
conseguimos é uma mescla, sempre instável, de um e outro.
Que tem o
futebol a ver com isso? Tudo. Raro objeto é tão esquivo, tão elusivo quanto a
bola. Ela quica, numa adaptação curiosa do inglês kick, que significa usar o pé
ou pés para chutar (palavra que, por sua vez, vem do inglês shoot). Mas vejam a
mudança: to kick descreve uma ação do jogador, enquanto “quicar” se refere ao
movimento da bola. O jogador chuta, numa reação elaborada ao longo de anos de
treino e luta, para acertar a meta. Já a bola “bate e volta”, como explica o Houaiss
no verbete “quicar”, afetada pelo gramado, o vento, sabe-se o que mais. To kick
é virtù. Quicar é fortuna. Do inglês ao português, passamos da ação deliberada,
com um sujeito que planeja, para o azar do objeto, que adquire vida própria,
furtando-se ao que o jogador almejava.
As mãos
são melhores, para imprimir movimentos seguros, do que os pés. Com a mão
sintonizamos melhor direção e distância. O pé é mais forte, sim, mas chutar é
uma arte difícil. Jogar com maestria usando os pés é uma proeza. Um esporte com
os pés provavelmente exige mais do que se usasse as mãos. Por isso, quando um
país adota o futebol como esporte de sua identidade nacional, quando o mundo o
eleva a modalidade esportiva dominante, país e mundo escolhem uma tarefa, uma
missão mais difícil, mais nobre: talhar um membro para a atividade à qual não é
o mais adequado, alçar pela dificuldade os membros inferiores a uma condição
superior. O mundo vira de cabeça para baixo, o pé domina, como naqueles mapas
quatrocentistas em que o Sul está acima e o Norte, abaixo. É como o orador
ateniense Demóstenes, que venceu a gagueira, não facilitando, mas dificultando
seus exercícios: para agravar o desafio, ele enchia de pedrinhas a boca. O
futebol, além de lidar com variáveis sobre as quais o controle é por princípio
impossível (as da fortuna), dificulta aquilo que seria mais passível de
planejamento e deliberação - usando os pés em vez das mãos. Acentua a fortuna,
para exigir mais da virtù.
“Meter os
pés pelas mãos” é uma expressão corrente nossa, para indicar o máximo da
inabilidade. Não é fascinante que os brasileiros queiram ser hábeis usando os
pés e não as mãos? A ambição é alta. Ainda mais porque, pelo menos até hoje,
quando se pensa no país mais identificado ao futebol, se elege o Brasil. Que de
propósito escolhe o difícil. A cada partida entram em campo não só dois times,
mas a virtù e a fortuna. Um gol - ou uma defesa - geralmente é uma vitória da
virtù sobre a fortuna.
Muitos
viram a goleada da Alemanha na seleção como uma vitória da técnica sobre a
intuição, ou seja, da virtù sobre a fortuna. Discordo desse exercício de
amesquinhamento do Brasil. Do esporte que foi bretão, nunca se exclui a
fortuna. Os seis minutos cruciais em que se apagou a nossa estrela (lembro que
a fortuna é da família da astrologia) poderiam não ter ocorrido daquele jeito.
Cada vez que um gol é anulado, ele não se repete. É claro que devemos investir
mais na virtù, aprimorar pontos falhos. Mas um jogo de futebol é sempre uma
encenação do drama principal do poder, em que a ação deliberada do homem
confronta o acaso da grama, do ar, do clima. Um campeonato de futebol é um
drama do poder. Hoje, quando cada um de nós se sente livre - e inseguro - como
o príncipe de Maquiavel para lidar com o mundo, sem mais o amparo dos velhos
referentes, uma partida serve de metáfora da vida, de continuação desse combate
que o homem trava para governar o destino, esse drama de Sísifo, que nunca
vencemos de todo, que no final sempre perdemos, mas que é imperioso
travar.
Renato
Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia na USP
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