Por Giovanni Alves.
O “choque de
capitalismo” ocorrido na década de 2000 intensificou e ampliou as
contradições sociais inerentes ao desenvolvimento histórico da sociedade
burguesa no Brasil. Dez anos de Lula e Dilma (2003-2014) significaram
uma indiscutível atualização histórica do capitalismo no Brasil e o
fortalecimento da hegemonia burguesa no país por conta do novo ciclo de
modernização neodesenvolvimentista. Aumento real do salário-mínimo
(cerca de 70%), aumento do emprego formal (de baixa qualificação) e
redistribuição de renda por meio de programas sociais de combate a
pobreza extrema (Bolsa Família), que implicou na saída da pobreza
absoluta de mais de 20 milhões de pessoas. De fato, trata-se de algo sem
precedentes em nossa história republicana. Apesar da persistência do
Estado neoliberal no Brasil, alterou-se o padrão de desenvolvimento
capitalista nos últimos dez anos, provocando indiscutivelmente, mudanças
internas na morfologia das classes e camadas sociais.
A discussão candente sobre a “nova classe média” (Marcelo Neri), ou melhor, “nova classe trabalhadora” (Márcio Pochmann), ou ainda os “batalhadores brasileiros” (Jessé de Souza); ou ainda, o debate sobre o “precariado” (Ruy Braga/Giovanni
Alves), demonstram que o Brasil mudou – é claro, mudanças sociais no
interior do padrão histórico de desenvolvimento do capitalismo
hipertardio caracterizado ontogeneticamente pela “modernização
conservadora” e passivização histórica (como diria Tomaso di Lampedusa,
“tudo deve mudar para que tudo fique como está”).
O
neodesenvolvimentismo no Brasil, como modo de “revolução passiva” do
capitalismo brasileiro nas condições históricas da crise do capitalismo
neoliberal, repôs de modo farsesco, o traço ontogenético do capitalismo
hipertardio de feição colonial-escravista: a modernização conservadora. Na verdade, é impossível fazer uma crítica relevante
do capitalismo brasileiro sem levar em consideração as mudanças sociais
ocorridas no Brasil nos últimos dez anos de Lula e Dilma (o que
explica, de certo modo, a irrelevância politica da maior parte da
critica da extrema-esquerda marxista que despreza in limine, a natureza qualitativamente nova da hegemonia burguesa no Brasil que surgiu na era do lulismo).
Entretanto,
afirmar que o Brasil sofreu um “choque de capitalismo” nos dez anos de
Lula e Dilma implica buscar desvendar o enigma do neodesenvolvimentismo
(o que tentamos fazer no recém-lançado livro Trabalho e neodesenvolvimentismo),
rastreando os vestígios da contradição viva do capital que se
expressam, principalmente, no plano do metabolismo social do trabalho.
Para uma crítica relevante do capitalismo brasileiro hoje, urge
desvendar, com imaginação sociológica, os impactos do “choque de
capitalismo” da última década na morfologia social e sociometabolismo do
mundo do trabalho no Brasil. Nossa hipótese, neste pequeno ensaio, é
que a modernização neodesenvolvimentista – variante da modernização histórica da periferia capitalista na era do declive civilizatório
do capital – fez surgir no Brasil novas misérias humanas decorrentes da
aceleração da vida social nas metrópoles capitalistas por conta da
disseminação da lógica do trabalho abstrato.
* * *
A nova
expansão do capitalismo no Brasil nas condições do capitalismo
manipulatório de base midiático-informacional, disseminou no corpo
social, insanas e delirantes contradições vivas próprias do novo
sociometabolismo do capital global, contradições sociais que se
desdobram naquilo que caracterizamos como sendo inquietações existenciais e carecimentos radicais
nas individualidades pessoais de classe. Na verdade, ocorreram não
apenas mudanças cruciais na estrutura de classes e estratificações
sociais (com recorte geracionais, étnico e de gênero), mas
principalmente, mudanças no metabolismo social das camadas e frações de
classe do proletariado urbano.
A
“modernização conservadora” de cariz neodesenvolvimentista que ocorreu
no Brasil da década de 2000 expos na década seguinte seus limites irremediáveis – o que não se confunde com o esgotamento do neodesenvolvimentismo. Os limites do neodesenvolvimentismo dizem respeito à crescente contradição entre as promessas
(e expectativas) de reforma social do capitalismo no Brasil, e os
candentes constrangimentos do orçamento público da União pelo
comprometidmento com a amortização e serviços da divida pública nas mãos
do capital financeiro. Por exemplo, dados do Senado Federal relativos a
2013 apontam o pagamento de R$ 718 bilhões em juros e amortização da
dívida, o que equivale a 40,3% de tudo que foi arrecadado em impostos
pelo poder público no ano passado com a amortização da divida pública.
Na medida em que as reformas sociais exigem um maior aporte de gastos
públicos, o orçamento público encontra-se “capturado” pelos interesses
do capital financeiro (banqueiros e grandes investidores do sistema
financeiro internacional).
Portanto, por um lado, o “choque de capitalismo” explicitou candentes necessidades sociais
que, para serem satisfeitas, exigem dos governos – federal e estadual –
altos gastos públicos (por exemplo, investimentos na educação e saúde
pública de qualidade, transporte e infraestrutura urbana, segurança
pública, etc). Por outro lado, as pretensões de reforma social implicam
romper efetivamente com os constrangimentos do Estado neoliberal
(sociedade politica oligárquica e sociedade civil neoliberal),
renunciando à lógica da estratégia politica do lulismo, que garantiu nos
últimos dez anos, as alianças políticas e a governabilidade do projeto
neodesenvolvimentista (reformismo mais fraco e lento, incapaz de
confrontar o bloco de poder do capital). Na verdade, o salto qualitativamente novo
no interior do projeto neodesenvoliventista de combate à desigualdade
social e reforma social no País exigiria alterar a própria correlação de
forças sociais e politicas entre os interesses do trabalho e do capital
na sociedade brasileira (o que está muito distante de ocorrer).
Portanto,
nossa hipótese principal neste ensaio é que, o “choque de capitalismo”
neodesenvolvimentista provocou, no plano do metabolismo social do
trabalho vivo, profundas inquietações existenciais nas individualidades pessoais de classe, expondo nelas, carecimentos radicais próprios de indivíduos universalmente desenvolvidos nas condições históricas do desenvolvimento civilizatório do capital alcançado como contradição viva. Nos Grundrisse, Karl Marx afirmou que,
“o
grau e a universalidade do desenvolvimento das faculdades, que tornam
possível esta individualidade, pressupõem precisamente a produção
baseada sobre os valores de troca, pois só ela produz a universalidade
da alienação do indivíduo para consigo mesmo e para com os outros; mas
igualmente a universalidade e a generalidade das suas relações e
capacidades”.
Na verdade, os carecimentos radicais provocados pelo novo modo de vida just-in-time
no Brasil da era do neodesenvolvimentismo, levaram as pessoas, diante
das misérias espirituais da sociedade civil neoliberal, a fazer escolhas pessoais espúrias ou buscar vias grotescas de escape no plano pessoal.
Como salientamos no livro Trabalho e neodesenvolvimentismo,
o Estado neoliberal (sociedade política oligárquica e sociedade civil
neoliberal) persiste no Brasil nos dez anos de Lula e Dilma, o que nos
leva a distinguir Estado de governo. A incapacidade dos governos neodesenvolvimentistas de alterarem o Estado neoliberal significou, não apenas a manutenção da sociedade politica neoliberal, mas também a preservação da sociedade civil neoliberal
com seu sociometabolismo da barbárie. A cultura neoliberal, disseminada
intensa e extensivamente a partir da década de 1990, contribuiu para
aprofundar a miséria espiritual das massas manipuladas pelo capitalismo
global. Por isso, observou-se, ao longo de mais de vinte anos de
hegemonia da cultura neoliberal no Brasil, a imbecilização espiritual e o esvaziamento ideológico
dos aparelhos privados de hegemonia social, como partidos e sindicatos
de trabalhadores, expondo, deste modo, o vazio intelectual-moral
profundo da sociedade brasileira.
A miséria espiritual da sociedade civil neoliberal no Brasil, com sua crise do sentido humano (ensimesmamento) e crise do trabalho vivo (o que discutimos no livro Trabalho e neodeenvolvimetismo), explica o surgimento candente das inquietações existenciais e carecimentos radicais insatisfeitos pela nova dinâmica sociometabolica da organização do trabalho e modo de vida. O novo modo de vida just-in-time, que nasceu no bojo do toyotismo sistêmico (que discutimos no livro O novo (e precário) mundo do trabalho) explica a disseminação das vias grotescas de escape que adquirem o caráter de espiritualidade espúria ou assumem a forma de irracionalidade social.
O capitalismo como religião no Brasil do neodesenvolvimentismo necessita de sua teologia profana. É o que denominamos, a tríplice teologia do neodesenvolvimentismo, isto é, as teologias da prosperidade, as teologias da auto-estima e empreendedorismo; e as teologias do consumo de marcas.
Ao mesmo tempo proliferam filosofias de auto-ajuda, com milhões de
trabalhadores brasileiros – a maior parte das “camadas médias” – em
busca de apoio espiritual e sucesso individual. Na década do choque de
capitalismo neodesenvolvimentista, os livros de auto-ajuda tornaram-se best-sellers
nas livrarias. Enfim, as pessoas-humanas-que-trabalham, imersas na
condição de proletariedade, buscam soluções prontas para seus problemas
cotidianos, vias de escape para o sofrimento, receitas de
sucesso e de felicidade, simplicidade para encarar os complexos
problemas da existência alienada; buscam um refúgio de suas realidades,
com a fantasia de poderem magicamente e com o mínimo de esforço e
sofrimento resolver suas vidas. Além dos livros de auto-ajuda, temos as
vias do espiritualismo da Nova Era, gnoses, crenças carismátivas,
esotéricas e antroposoficas, etc.
Por exemplo, nas teologias da auto-estima e do empreendedorismo, Deus
é substituído pelo ideal de Sucesso. A ideologia do empreendedorismo
originou-se da ideologia do sucesso oriunda dos EUA, a civilização do
capital global. É clássica a divisão ideológica na cultura liberal entre
winners e losers. A idéia de empreendedorismo é a das idéias
teológicas a mais insidiosa, porque opera o mecanismo ideológico da auto
culpabilização da vítima: “se eu fracassei a culpa é minha”. A teologia
do empreendedorismo é a internalização absoluta dessa censura: “O
sucesso é minha responsabilidade, o fracasso é minha culpa”. Coragem,
ousadia, auto-estima, iniciativa, fazem parte do sujeito vitorioso.
O novo homem
do capital no século XXI é o empreendedor. Ele é o modelo de uma
teologia imanente, uma teologia da matéria, que atingindo aquele ponto
leva os outros à felicidade. Este novo homem adquire a salvação mediante
sua iniciativa pessoal, tal como o homem medieval, mas não é uma
iniciativa pessoal em busca de um além, mas é de um hic et nunc,
de um aqui e agora terreno; e o inferno dessa teologia é o fracasso
financeiro e pessoal. Na era do neodesenvolvimentismo disseminaram-se os
livros sobre empreendedorismo, com treinadores pessoais, coaches,
dizendo “você precisa confiar em você”, “você precisa ter metas”, “você
precisa se desenvolver”, “você precisa colocar essas metas e repetir
‘eu posso’, ‘eu sou vitorioso’”. É curioso que, há alguns anos isso
seria tido como esquizofrenia ou bipolaridade; hoje é tido como
consistência pessoal.
As maiores
vítimas das teologias do empreendedorismo e auto-ajuda e das teologias
do consumo de marca são a juventude precária, a dita “geração Y” nascida
na era neoliberal, manipulada incisivamente pelo “espirito do
toyotismo” e exposta hoje, mais do que nunca, à inquietação existencial e
carecimentos radicais (vide meu livro Trabalho e subjetividade – o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório).
A “teologia da prosperidade”, também
conhecida como “evangelho da prosperidade”, é uma doutrina religiosa
cristã que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os
cristãos; e que a fé, o discurso positivo e as doações para os
ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel. A
doutrina das teologias da prosperidade interpreta a Bíblia como um
contrato entre Deus e os humanos; se os humanos tiverem fé em Deus, Ele
irá cumprir suas promessas de segurança e prosperidade. Reconhecer tais
promessas como verdadeiras é percebido como um ato de fé, o que Deus irá
honrar. O show da fé procura cultivar ilusões de prosperidade por meio
de acessos mágicos à sociedade de consumo. Apesar do recuo do
crescimento das igrejas evangélicas neopentecostais na década de 2000,
em comparação com a década de 1990 (segundo dados do censo religioso de
2010, na década de 1990, os evangélicos cresceram 120%, enquanto na
década de 2000, o crescimento foi de 61,45%), o crescimento do evangelho
da prosperidade na década do neodesenvolvimentismo não deixou de ser
significativo. Em 2000, cerca de 26,2 milhões de brasileiros se disseram
evangélicos, ou seja, 15,4% da população; em 2010, eles passaram a ser
42,3 milhões, ou 22,2% dos brasileiros. De qualquer modo, o crescimento
das teologias de prosperidade na temporalidade histórica neoliberal no
Brasil não deixa de ser impressionante (em 1980, o percentual de
evangélicos era de 6,6%; em 1991, de 9%; e em 2010, de 22,2%). Na
verdade, presenciamos o crescimento do pluralismo religioso no Brasil,
inclusive de pessoas sem religião, mas que não deixam de expressar um
ateísmo religioso, pois surgem outros modos de espiritualidades
espúrias, tais como as teologias da auto-estima e do empreendedorismo e o
culto das marcas, ou filosofias de auto-ajuda, espiritualismos da Nova
Era, gnoses, crenças carismáticas, esotéricas e antroposóficas, etc.
As teologias do consumo de marca
surgem no bojo do novo padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil.
O neodesenvolvimentismo baseou-se na exacerbação do crédito capaz de
incrementar o mercado interno de consumo (de 2003 a 2013, a oferta de
crédito cresceu cerca de 140% no País). A própria idéia de cidadania
reduziu-se à idéia de acesso ao mercado de consumo de massa.
Proliferou-se a idéia da inclusão social pelo consumo como meio de
afirmação da identidade social. Nas condições de crise do trabalho vivo,
constituído pela crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise
de auto-referencia pessoal, o consumismo tornou-se via grotesca de escape
do vazio existencial, principalmente entre os jovens das camadas médias
ou camadas populares do proletariado (precariado ou “proletaróides”),
alvos privilegiados das estratégias de marketing e propaganda das
grandes empresas do capital global. A carência de modernização que caracteriza o capitalismo hipertardio no Brasil, fez com que o consumo de marca
se tornasse um ídolo sagrado. Na verdade, o sagrado está cada vez mais
comercializado e dessacralizado. A década do neodesenvolvimentismo
demonstrou que o Brasil está cada vez mais desencantado, apesar da
proliferação das teologias da prosperidade. Nas condições da miséria
brasileira, percebemos hoje, mais do que nunca, a articulação orgânica
entre o arcaico e o moderno, o sagrado e o profano. Entretanto, é
importante ver também o consumo popular das marcas, ou a sua ostentação
social, como um sentido íntimo de afirmação pessoal, símbolo de ascensão
social nas condições da sociedade brasileira historicamente
desigualitária, racista e excludente.
As vias grotescas de escape
da tríplice teologia do neodesenvolvimentismo são, como as filosofias
da auto-ajuda e filosofias da Nova Era, respostas às inquietações
existenciais e carecimentos radicais das pessoas-que-trabalham. Não
podemos condenar as criaturas aflitas que procuram na religião, sagradas
ou profanas, uma via de escape para sua miséria humana. Inclusive,
podemos dizer que a tríplice teologia do neodesenvolvimentismo no
Brasil, possui, de certo modo, a mesma legalidade ontológica do
sentimento religioso. Disse Karl Marx numa brilhante passagem da
introdução de 1844 a sua Crítica à filosofia do direito de Hegel:
“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto
contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o
ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião
é o ópio do povo.” (Crítica à filosofia do direito de Hegel, p.145)
Na verdade, o
“choque de capitalismo” no Brasil neodesenvolvimentista – que
incorporou o espírito do capitalismo global –, explicitou, de modo
candente, a impossibilidade da vida plena de sentido nas condições históricas do sociometabolismo da barbárie. Por isso o apego às teologias do neodesenvolvimentismo, que podemos denominar, teologias do grotesco
(ou teologias da caricatura). As teologias do neodesenvolvimentismo
podem ser denominadas “teologias do grotesco” na medida em que o grotesco obstaculiza o sentimento de tragédia (que possui um elemento catártico).
Mas o século
XXI, tal como o século passado, pode ser considerado o “século de Franz
Kafka”, como diria o filosofo Karel Kosik no texto “O século de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do trágico no nosso tempo”. Disse Kosik:
“Kafka
chegou à conclusão – e essa, a meu ver, é a sua descoberta mais
significativa – de que a nossa época moderna é hostil ao trágico, trata
de exclui-lo, e em seu lugar institui o grotesco. Por isso, o século de
Franz Kafka é, ao mesmo tempo, o século cuja quintessência se acha
corporificada numa de suas figuras: a personagem Grete Samsa, uma
espécie de anti-Antígona do século XX”.
O
capitalismo global (1980-2014) inaugurou uma nova era da desmedida do
capital, que exacerbou – e elevou a um patamar superior – o
sociometabolismo da barbárie que marcou o breve século XX. As vias
grotescas de escape às inquietações existenciais e carecimentos radicais
do século XXI, expõem a natureza do grotesco como caricatura ou
imitação pobre (pode-se dizer, por exemplo, que as teologias da
prosperidade são uma imitação pobre das religiões); e, ao mesmo tempo,
impossibilidade de catarse ou auto-transcendencia. Como disse Kosik, a
tragédia nasceu com a pólis grega:
“A
pólis se funda, perdura e renova no conflito (“pólemos”) entre o humano
e o divino, o passageiro e o duradouro, o banal e o elevado. Se o
humano suprime o divino, o passageiro elimina o duradouro e o banal
acaba com o elevado, a comunidade se desintegra, a pólis desaparece e
com ela desaparece também a tragédia”.
Portanto, a
era do grotesco tornou-se a era da banalização universal, era da
corrosão do caráter (Sennett) ou era da “vida líquida” (Baumann); era do
isolamento e da atomização; e as vias grotescas de escape, esvaziam o conflito ideológico, desintegrando, no plano ideal, a dimensão da pólis
(política) e da própria tragédia como expressão do caráter
contraditório do tempo, que expressa o que passa e o que perdura (o que
significa que a “presentificação crônica” constada por Eric Hobsbawn é
um sintoma lúgubre da era do grotesco); ou ainda, suprimindo o sentido
de tragédia como expressão da própria percepção de possibilidade de
auto-transcendência da inquietação existencial. A rigor, a inquietação
existencial e seus carecimentos radicais na era do capitalismo global
são apreendidos como normalidade – isto é, a “normalidade” é a
banalidade, a superficialidade, a pequenez. O ensimesmamento faz com que
a pessoa não tenha mais disponibilidade ou vontade para sair dessa
situação degradante.
Podemos
dizer que as teologias do consumo de marca, teologias do
empreendedorismo e teologias da prosperidade, com suas vias de cariz
neopentecostalista ou vias do espiritualismo da Nova Era (as gnoses,
crenças carismáticas, esotéricas e antroposóficas, etc), são expressões
efetivas do fenômeno social da crise do trabalho vivo e da
“vida reduzida”; traços do sociometabolismo da barbárie na época
histórica da crise estrutural do capital, que obstaculizam a
autotranscendencia do existir humano; e, por conseguinte, impedem as pessoas ensimesmadas
de encontrarem um sentido pleno para a vida. Ao mesmo tempo, a “vida
reduzida” (categoria social que discutimos no livro “Trabalho e
neodesenvolvimentismo”), produz homens imersos em atitudes e
comportamentos intimistas e “particularistas”, construídos (e
incentivados) pelas instituições (e valores) sociais neoliberais. No
caso da espiritualidade espúria, o culto de Deus interverte-se no culto
de dEUs, isto é, culto narcísico do Eu. Estas são as condições
de existência social que surgem do metabolismo social do trabalho
reestruturado no capitalismo global, contribuindo para a exacerbação do
fenômeno do “estranhamento” na sociedade burguesa.
Finalmente,
podemos dizer que o neodesenvolvimentismo como modernização conservadora
no Brasil nos projetou historicamente para um novo campo de
possibilidade do pensamento crítico, capaz de elaborar um entendimento
radical da civilização planetária do capital. O Brasil – quinta economia
do mundo – está hoje no centro das misérias do capitalismo global,
articulando, em si e para si, as contradições sociais da ordem
metabólica do capital. Instigados pelo choque de capitalismo da década
de 2000, procuramos exercer a critica do modo de civilização burguesa,
que encontra no Brasil do século XXI, sua feição grotesca.
Estamos hoje
na era de crise irremediável do neodesenvolvimentismo, que expressa em
si e para si – e não poderia deixar de ser diferente – a crise
rastejante do padrão civilizatório do capitalismo hipertardio nas
condições históricas do declive civilizatório do capital. Mais
do que nunca, o capital nas condições históricas do capitalismo global,
se explicita como contradição viva, disseminando ilusões sobre suas
possibilidades civilizatórias, principalmente na borda periférica da
civilização do capital, como é caso do Brasil. Na verdade, existem
contradições candentes entre promessas civilizatórias (postas como
ideologia) e a efetividades da barbárie social como manipulação
reflexiva do sujeito-que-trabalha.
O resgate da critica radical do capital, implica não apenas elaborar um tertium datur entre
o social-reformismo e o esquerdismo político, pólos antitéticos e
unilaterais que dilacera a esquerda brasileira; mas principalmente
elaborar um pensamento critico e radical capaz de discutir a
problemática do novo sociometabolismo do capital, apreendendo, por
exemplo, as dimensões da precarização do trabalho vivo como precarização
do homem como ser humano-genérico; e colocando como tarefa crucial, a
construção da nova hegemonia socialista no país por meio da formação
humana para além do dogmatismo e sectarismo que caracterizaram a
esquerda marxista no século XX.
***
O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras.
Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o
exemplo emblemático de Portugal”, escrito com Dora Fonseca, publicado no
Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.
***
Giovanni Alves é
doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e
professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do
Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa
reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/07/neodesenvolvimentismo-e-a-nova-miseria-espiritual-das-massas-no-brasil/
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