terça-feira, 23 de setembro de 2014

CAPITALISMO: A dívida como dispositivo biopolítico de governo da vida humana

A dívida como dispositivo biopolítico de governo da vida humana


O filósofo Castor Bartolomé Ruiz aproxima os conceitos de Culpa e Dívida, para evidenciar os modos como a lógica sacrifical nos submete ao Capitalismo

Por: Márcia Junges e Andriolli Costa

Em alemão, a palavra schuld é utilizada para significar “dívida” ou “débito”. Curiosamente, o mesmo termo pode ser utilizado, em outro contexto, no sentido de “culpa”. A ambiguidade não passa despercebida para Walter Benjamin, que chama atenção para o fato em Capitalismo como Religião (São Paulo: Boitempo, 2013). A partir desta reflexão, o filósofo Castor Bartolomé Ruiz discorre sobre os modos como o sacrifício foi incorporado secularmente no capitalismo na categoria de dívida. “A dívida se tornou, para o capitalismo, o meio de culpar a vida humana de modo a exigir dela o sacrifício necessário para compensar o que deve”, afirma ele.

“O dispositivo teológico do sacrifício foi interiorizado como técnica econômica de governo. O capitalismo financeiro só pode subsistir produzindo dívidas. Na hipótese de que não houvesse ninguém com dívidas, o capitalismo financeiro entraria em um colapso total. É a dívida que gera o lucro.” A culpa no Capitalismo, no entanto, não é expiante, mas é mais e mais culpabilizante, e seu único modo de remissão é o sacrifício através de um trabalho maior, mais extenuante ou mais explorado. Desta forma, alerta, “temos aqui sinalizado um dispositivo biopolítico de governo da vida humana”.

Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo retoma também a discussão sobre a entificação do Mercado que, a princípio, não seria nada mais que uma forma de organizar a produção, a comercialização e as relações econômicas entre pessoas e sociedades, mas que passa a dominar e objetificar o homem. “O mercado foi ressignificado como se fosse uma entidade com natureza própria (...), cuja natureza se rege pelo interesse próprio dos indivíduos”, explica. Ruiz expõe ainda o egoísmo como estruturante do mercado, e afirma: “o egoísmo foi instituído como categoria antropológica da natureza humana que por sua vez estrutura o modo natural do mercado de se comportar”.

Castor Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, com mestrado em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutorado em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Atualmente é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. Entre outros, destacamos os seguintes livros de sua autoria: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir da obra O reino e a glória (São Paulo: Boitempo, 2011), de Agamben , em que medida pode-se dizer que a lógica sacrificial da religião “entrou” no capitalismo?
Castor Bartolomé Ruiz - A obra de Agamben O Reino e a Glória é uma pesquisa sobre a arqueologia das formas de governo nas sociedades ocidentais e sua matriz teológica. Nela há referências ao sacrifício, porém sua tese principal é que o aparato conceitual do governo da vida, implementado nas modernas técnicas de governo e administração (como o contrato e o mercado, entre outras), foi desenvolvido nos debates teológicos sobre o governo providencial do mundo por Deus. A matriz teológica cristã retoma a problemática da filosofia estoica  sobre a providência do mundo, porém desenvolve a tensão que há entre a soberania imutável da natureza divina e o governo providente da liberdade humana. Segundo Agamben, essa fissura entre soberania e governo, que foi detectada pela teologia, se mantém como fissura da política ocidental tal e como a conhecemos na modernidade. Ela é a chave hermenêutica para compreendermos criticamente nossos dispositivos de governo e soberania.
Nesta obra, Agamben não desenvolve o que poderíamos chamar uma arqueologia política do sacrifício. Esta é uma pesquisa que talvez esteja por ser feita em toda sua profundidade e dimensão. Contudo, há reflexões que já esboçaram esta problemática. Destaco, entre outros, o fragmento de artigo de Walter Benjamin : O capitalismo como religião (São Paulo: Boitempo, 2013). Neste ensaio, Benjamin explora a dimensão religiosa do capitalismo, em especial através de seu componente sacrificial. O sacrifício foi incorporado secularmente no capitalismo na categoria de dívida (Schuld, que também significa culpa).

Endividamento
Teologicamente, a genealogia do sacrifício se justifica como pagamento de uma culpa, que é dívida contraída com a divindade. Através da dívida a vida humana se torna culpada, e por sua vez se vê obrigada a pagar com sacrifício. A culpa gerada pela dívida justifica a necessidade do sacrifício como dispositivo compensador. A vida endividada é uma vida culpada que deve sacrificar-se para pagar a dívida. A vida endividada está condenada ao sacrifício.
O capitalismo, analisa Benjamin, fez da dívida um de seus principais mecanismos de sustentação. A dívida se tornou, para o capitalismo, o meio de culpar a vida humana de modo a exigir dela o sacrifício necessário para compensar o que deve. O dispositivo teológico do sacrifício foi interiorizado como técnica econômica de governo. O capitalismo financeiro só pode subsistir produzindo dívidas. A dívida dos outros gera o lucro dos credores. Na hipótese de que não houvesse ninguém com dívidas, o capitalismo financeiro entraria em um colapso total. É a dívida que gera o lucro. Este dispositivo induz o capital a oferecer créditos fáceis para estimular o endividamento amplo. Quanto mais pessoas se endividarem, maior é o lucro que se obterá delas.

Dispositivo sacrificial da dívida
O dispositivo da dívida é constantemente ativado pelo capitalismo como meio de manter funcionando o sistema. A conjuntura em que vivemos de uma ampla oferta de crédito tem por objetivo manter e ampliar o dispositivo sacrificial da dívida como meio econômico de governar lucrativamente a vida dos outros. As pessoas endividadas terão que dedicar longos períodos de sua vida a trabalhar sacrificadamente para compensar a dívida adquirida. O trabalho para pagar a dívida representa a oferta do sacrifício desse tempo de vida para compensar a culpa inerente ao crédito. Quem se endivida terá que sacrificar-se. Para que o sistema de acumulação do lucro funcione, haverá que estimular o endividamento através do crédito relativamente fácil, embora com garantias.
O sacrifício, através da dívida, tornou-se um dispositivo gerador de lucro, mas também uma técnica de governo da vida humana. As vidas endividadas são vidas governadas pela culpa cujo único meio de remissão é o sacrifício através de um trabalho maior, mais extenuante ou mais explorado. Temos aqui sinalizado um dispositivo biopolítico de governo da vida humana.

Sacrifício em escala planetária
O caráter sacrificial do capitalismo também tem sido amplamente desenvolvido entre nós por estudos de pensadores como Franz Hinkelammert , Hugo Assmann , Jung Mo Sung , entre outros. O capitalismo é um sistema econômico que planeja o sofrimento humano de uns como efeito colateral necessário para manter o lucro e o crescimento de outros. A lógica do benefício próprio que se contrapõe à procura do bem comum se legitima como algo natural. A naturalização desta lógica leva a aceitar socialmente que os mais espertos e capazes gerenciem o sistema de modo que seu interesse individual seja o motor natural da produção. Esse interesse individual, enaltecido pelo liberalismo econômico como algo inerente à natureza humana, traz como consequência, também supostamente “natural”, que muitos devam ser sacrificados.

O sacrifício forma parte das planilhas, das metas e dos resultados de ministérios, das corporações e das empresas que projetam um índice necessário de sacrifício humano para que o sistema funcione. Planeja-se um índice médio de desempregados, de pessoas que poderão morrer sem atendimento médico, de falta de moradia, de educação precária, etc. O sacrifício dessas pessoas é um efeito colateral planejado para que o sistema funcione corretamente. O capitalismo projeta um sacrifício em escala planetária, que o torna a religião mais universal que nunca existiu.

Objetivação do ser humano
O paradoxal do caráter sacrificial é que, em plena modernidade, o capitalismo retroagiu a economia política ao debate teológico ancestral entre os ídolos e o Deus da vida. Na revelação bíblica esse debate está bem caracterizado. O que diferencia o Deus da Vida dos ídolos é que estes necessitam dos sacrifícios humanos para existirem, enquanto o Deus da Vida nega o sacrifício como elemento constitutivo de sua revelação. Deus detém o braço de Abraão no sacrifício do filho. René Girard  foi um pensador que destacou o caráter antissacrificial da cruz de Jesus. Sua morte política é a negação do valor do sacrifício porque assumiu o sacrifício em si mesmo para invalidá-lo.
O capitalismo é um sistema econômico que emula o ídolo. Subsiste a base do sacrifício humano. Sem o sacrifício humano, o capitalismo, como o ídolo, desapareceria. A genealogia do sacrifício coloca em questão muitas teologias do sacrifício, assim como desmascara o caráter sacrificial inerente ao capitalismo como sistema que gera o sofrimento humano, dele se nutre e sem ele definha.
Desde uma outra perspectiva, já Marx  tinha apontado para o caráter idolátrico do mercado ao analisar a dimensão fetichista da mercadoria capitalista. No capitalismo, o fetichismo da mercadoria se desenvolve num duplo aspecto. No modo de produção capitalista, a mercadoria é um fim, e a mão de obra, um meio. O ser humano é objetivado, sacrificado no processo produtivo, como mero recurso material e biológico para a obtenção do fim primário da produção: a mercadoria. A mercadoria se humaniza e a vida humana se mercantiliza.

O ocaso das utopias e a ascensão da mercadoria
Num outro aspecto, a mercadoria capitalista incorporou um valor simbólico de troca para além do valor de uso. A compra e possessão da mercadoria oferecem muito mais que seu valor material de uso. A mercadoria adquire, no atual modelo de mercado, um valor humano fetichista. Ela oferece felicidade, status, segurança, paz, alegria, bem-estar, etc. A mercadoria é portadora dos valores humanos mais nobres e utópicos. Numa época de niilismo pragmático, a mercadoria brilha como o novo horizonte utópico das aspirações sociais e individuais. De alguma forma podemos dizer que a nova utopia é a posse de mercadorias. A morte das utopias e das convicções fortes de nossas sociedades pós-metafísicas parece ter encontrado um ponto de escoamento da irrenunciável aspiração humana: a mercadoria.
A mercadoria toma o lugar dos valores e ideais humanos, os absorve, oferecendo uma felicidade material concreta na sua posse e desfrute material. Ela é o novo fetiche que oferece a ilusão de uma alienação sob aparência de felicidade irrestrita. O fetiche da mercadoria criou a promessa de redenção no novo paraíso do consumo. O Éden bíblico foi substituído pelo hedonismo mercantil.
A humanização fetichista de mercadoria é proporcional à objetivação mercantil da vida humana. Este processo fetichista desemboca no inevitável sacrifício da vida humana em prol da mercadoria. Esse sacrifício também se faz num duplo aspecto.
1) O processo produtivo adquire uma matriz biopolítica em que a vida humana é sacrificada para atingir as metas.
2) Na dinâmica de consumo, a vida humana é sujeitada por dispositivos de produção de desejos que, numa outra dimensão da matriz biopolítica, a tornam um meio útil para um fim eficiente.

IHU On-Line - Qual é a diferença entre o mercado medieval e o mercado hoje? Como se deu essa mudança de significados?

Castor Bartolomé Ruiz - Em primeiro lugar é conveniente firmar o princípio de que o mercado não é uma entidade natural com leis próprias. É uma instituição histórica criada a partir dos interesses em jogo. As chamadas leis do mercado são regulamentos e normatizações históricas criadas para seu funcionamento concreto. Da mesma forma que foram criadas, podem ser mudadas. Quanto mais complexas, mais difícil sua transformação. O mercado não é culpado de nada, nem é o salvador de ninguém. Ele é uma forma de organizar a produção, comercialização e relações econômicas entre pessoas e sociedades.
O mercado medieval não era uma instituição-chave da estrutura estamental daquelas sociedades, nem um dispositivo central da organização da sua estrutura de poder. Embora devêssemos fazer algumas distinções pertinentes sobre o mercado das ligas comerciais e os mercados das urbes, em linhas gerais poderia se dizer que o funcionamento do mercado medieval que se praticava nas urbes estava organizado em torno do princípio do bem comum.
Embora no marco de economias e sociedades muito menos complexas que as nossas, o mercado durante toda a Idade Média tinha o princípio do intercâmbio justo das mercadorias. O conceito de justiça era central ao mercado e ao intercâmbio. O mercado era um espaço em que se visava estabelecer relações justas através das trocas equitativas. Por exemplo, se impedia a especulação pela escassez. Havia uma regulação e um controle baseado no bem comum sob o critério da troca justa e do lucro justo. Este modelo de mercado seguia os princípios clássicos da filosofia política clássica do bem comum, mantidos pelo ideal cristão dominante de que todo governo deve visar ao bem coletivo e evitar ao máximo a especulação dos interesses privados. Por isso, os filósofos e teólogos medievais condenavam a usura no mercado e proibiam os juros por serem um mecanismo expropriatório injusto de riqueza alheia.
Esta concepção de mercado foi possível porque o mercado medieval era uma instituição periférica do sistema político daquelas sociedades. A injustiça estrutural que eivava as sociedades estamentais na Idade Média não utilizava o mercado como dispositivo e tecnologia, algo que irá mudar a partir do século XVII.

O egoísmo como estruturante do mercado
Atualmente, a noção de mercado em voga foi construída a partir das mudanças conceituais e estruturais acontecidas no século XVII na Europa. A emergência dos novos modos de produção baseados na acumulação privada de capital, assim como uma nova classe social dominante, a burguesia, desconstruiu o paradigma clássico do bem comum que legitimava os mercados medievais. Recuou os princípios do bem comum para as declarações formais do direito constitucional e liberou a economia dessa “intrusão”. O mercado, que era uma instituição periférica nas sociedades medievais, foi consolidado como um dispositivo central da nova política. Nascia a economia política.
O mercado foi ressignificado como se fosse uma entidade com natureza própria similar ao conceito de natureza humana criado nesse século. Assim, foi estruturado como uma entidade cuja natureza se rege pelo interesse próprio dos indivíduos. Ou seja, o egoísmo foi instituído como categoria antropológica da natureza humana que por sua vez estrutura o modo natural do mercado de se comportar.
O modelo antropológico do interesse próprio se mostrou muito eficiente na legitimação dos novos dispositivos reguladores da economia. O mercado tornou-se um dispositivo regulador das relações sociais e políticas, tendo como eixo legitimador a naturalidade do interesse próprio. Sua eficiência consiste em haver conseguido legitimar a desigualdade social como algo natural. Os mecanismos de concentração de riqueza e do poder através da acumulação privada do capital é concomitante ao despojamento de acesso ao poder e à riqueza das grandes maiorias sociais.
A desigualdade é produzida pelos mecanismos do mercado como algo normal. Naturalizam-se, por um lado, os dispositivos de concentração de poder em cartéis e oligopólios e, por outro, normaliza-se a necessidade das políticas sociais de sacrifícios inevitáveis, tudo referido a supostos dispositivos naturais de funcionamento do mercado.

Criadores e criatura
Este modelo de mercado tem-se complexificado enormemente a ponto de não mais conseguirmos perceber onde começa a criatura que fizemos e até onde estamos sendo criados à sua imagem e semelhança. A criatura parece devorar seus criadores tornando-nos à sua imagem e semelhança. Para sobreviver, nos adaptamos às leis do mercado que nós criamos. Caso contrário, seremos incapazes de sobreviver. Por sua vez, as sociedades abandonadas à lógica da pura acumulação ilimitada imposta pelo modelo de mercado imperante encontram-se à mercê das decisões de poucas corporações que, administradas por uma minoria, conseguiram acumular poder e riqueza em escala planetária.
A última crise do capitalismo financeiro ocorrida em 2008 é uma pequena amostra das consequências reais a que conduz a lógica do “livre” mercado. Utiliza-se falaciosamente o símbolo de “liberdade” para legitimar uma prática oligopolizadora do poder pelos mercados. Atualmente, sociedades inteiras encontram-se presas a políticas de sacrifícios extremos provocadas pela crise de solvência a que conduziu o modelo de “livre mercado” implementado pelos acordos de Washington no modelo neoliberal.

IHU On-Line - Pode-se dizer que o mercado hoje é algo como uma “entidade metafísica”? Por quê?

Castor Bartolomé Ruiz - Desde sua ressignificação simbólica pela modernidade, foi conferida ao mercado uma série de qualidades próprias de um “ente” natural. O conceito de “mão invisível” idealizado por Adam Smith foi o ponto de partida do agigantamento da autonomia do mercado separando da ação humana a lógica de seu funcionamento. O mercado foi dotado de uma potência própria, semelhante à natureza científica dos objetos, cujas leis existem além da vontade humana e por ela devem ser respeitadas. Ele foi simbolizado com um naturalismo próprio que deve ser acatado pelas políticas dos Estados e as decisões sociais para que possa funcionar corretamente.
Apresenta-se o mercado como onipresente, pois está em todas as partes. Ele se mostra onipotente, pois consegue regular todas as relações econômicas, sociais, políticas, até afetivas. Ele é justiceiro porque premia os bons investidores e castiga os maus ou ineficientes. Estes são atributos divinos que se imanentizaram nesta instituição.
Embora cada vez as teorias críticas do mercado tenham maior ressonância, face às crises que desmascaram a falácia do seu naturalismo, continua a persistir o discurso hegemônico que caracteriza o mercado como uma entidade. Nos discursos vigentes dos dirigentes políticos e empresariais é comum falar do mercado com artigo determinado, como um sujeito. Atribui-se ao mercado propriedades e qualidades de um sujeito transcendental. O mercado regula, o mercado define, o mercado estipula. Inclusive atribuem-se ao mercado sentimentos: o mercado está nervoso, o mercado está inseguro, o mercado está feliz, etc.
Ainda que muitas destas metáforas sejam captadas em seu sentido metafórico, também é verdade que permanece um tipo de naturalização desta criatura chamada mercado, pela qual parece que nos confrontamos com uma entidade metafísica. Esta percepção é parte da estratégia ideológica (consciente ou não) pela qual, ao naturalizar um dispositivo de poder, mantém o caráter sacral, se legitima socialmente seu funcionamento e se tornam aceitáveis as consequências exigidas. Lembremos que durante séculos foi naturalizada a origem divina do poder, assim como agora se naturaliza a origem extrínseca do mercado. A consequência desta naturalização é que se evita a consciência crítica, precondição para sua transformação histórica.

Sob a capa da secularização
O caráter metafísico com que foi revestido o mercado remete às implicações políticas da secularização moderna. Agamben analisa criticamente o processo moderno de secularização. A modernidade pretendeu libertar o ser humano de determinações externas, como a religião, porém, sob aparência de secularização, em muitas de suas instituições e discursos imanentizou os dispositivos da sacralidade. A sacralidade se caracteriza por separar a realidade do uso comum das pessoas colocando-a num outro patamar, sagrado, em que se tornam inatingíveis para a vontade humana. Quando algo ou alguém é declarado sagrado, se retira imediatamente do uso comum e fica consagrado ao uso especial de acesso restrito a especialistas. A sacralidade impõe o especialista no lugar do povo. Só as pessoas devidamente preparadas e reconhecidas poderão lidar com o sagrado. As pessoas comuns se caracterizam por sua incapacidade natural de aceder ao uso das coisas sagradas. A sacralização impede o acesso das pessoas comuns àquilo que é sagrado porque está fora de seu alcance.
A modernidade racionalizou a realidade pretendendo dessacralizá-la através do dispositivo da secularização. Porém, em muitos casos, a secularização manteve instituições e realidades na condição de entidades inacessíveis à ação humana. Ou seja, sob a aparência de racionalização manteve o dispositivo da separação e dos especialistas como elementos constitutivos da racionalidade de muitas instituições modernas. O mercado, o Estado, a nação, a lei, as formas de governo, congresso, senado, circulação do capital, entre outros, aparecem revestidos de uma racionalidade própria que deve ser respeitada por ter uma natureza intrínseca que excede a ação humana. Parece que só especialistas podem conhecer e operar com essas racionalidades imanentes que a pessoa comum não compreende, ou não consegue atingir com suas decisões. São realidades sociais secularizadas que imanentizaram o dispositivo da sacralidade na forma de racionalidade intrínseca inacessível ao povo comum impedindo que a ação política dos sujeitos vulgares (vulgo) possa transformá-las.
Agamben propõe a retomada crítica da ação humana sobre as instituições econômicas, políticas e sociais que sob uma capa de secularizadas permanecem na condição de inacessibilidade para ação social direta. Para tanto, propõe a categoria da profanação. Aquilo que se profana é retirado de sua condição de inacessibilidade sacral para voltar ao domínio do uso comum das pessoas.

Profanação como categoria filosófica
As categorias teológicas oferecem a possibilidade de pensar uma filosofia crítica inovadora além da mera categorização conceitual habitualmente desenvolvida pelo pensamento ocidental. Esta perspectiva filosófica foi apontada agudamente por Benjamin nas suas teses sobre filosofia da história. Na tese I apresenta a teologia como se fosse um anão feio e escondido na penumbra da história porque os pensadores modernos não a valorizam. Porém, mesmo relegada à penumbra, a teologia continua a estar presente na trama dos fios da ação histórica. Agamben, com suas diferenças, também reflete esta perspectiva filosófica que retoma da teologia sugestões instigantes para pensar criticamente nossa realidade.
O uso político do conceito de profanação que Agamben propõe, ainda que seja uma contribuição inovadora, nos permite encontrar rastros claros de uma genealogia clássica desse conflito. Se tomamos como referência duas grandes figuras históricas como Sócrates e Jesus Cristo, perceber-se-á que, em ambos os personagens, a sentença oficial que os condenava à morte argumentava que foram profanadores. Sócrates profanou a lei da cidade corrompendo a juventude com novas ideias. Jesus profanou permanentemente as principais instituições de sua sociedade. Afirmou que a lei é para o homem, e não o homem para a lei; profanou o sábado, curando quando estava proibido; profanou o templo, expulsando os vendilhões; profanou deixando-se tocar por mulheres impuras, etc. A profanação foi uma estratégia utilizada, entre outros, por Sócrates  e Jesus, em sociedades donde a sacralidade operava como dispositivo altamente eficiente para evitar que as pessoas comuns tivessem o poder de aceder ou transformar a realidade.

IHU On-Line - Tomando os escritos de Foucault em consideração, é correto afirmar que atualmente a economia funciona como normalizadora dos sujeitos? Por quê?

Castor Bartolomé Ruiz - Foucault dedicou uma parte significativa de suas últimas pesquisas a perfazer a genealogia dos dispositivos de governo da modernidade, que ele caracterizou como sendo dispositivos biopolíticos. Entre os dispositivos biopolíticos, Foucault destaca a segurança e também a economia. No curso ministrado entre 1978-1979, intitulado Nascimento da biopolítica, Foucault desenvolveu a genealogia da economia política moderna e contemporânea, chegando a analisar a genealogia do modelo neoliberal de economia.
A tese de Foucault é que os métodos modernos de governo, especialmente a economia, provocaram uma virada conceitual e prática em relação com a vida humana. Nas sociedades antigas, a vida humana natural, denominada pelos gregos de zoé, não era objeto de governo porque se considerava que era regida pelas leis ontológicas da natureza sobre as quais a vontade humana não tem poder. A modernidade, em especial os discursos econômicos, percebeu que o governo dessa vida humana natural, a vida biológica, era muito importante para a produção. Os novos conhecimentos de anatomia, estatística, organização espacial, etc., foram se deslocando paulatinamente para a produção de discursos sobre o aprimoramento do governo da vida humana no processo produtivo, nas instituições, pelo Estado.
Por exemplo, as modernas linhas de produção das fábricas surgem a partir de estudos sobre anatomia humana, o espaço e sua relação com a eficiência produtiva. O que está em jogo nestes discursos é a instrumentalização da vida humana como meio útil para um fim outro: o lucro. A vida humana é objetiva como recurso natural do qual se podem extrair benefícios, lucros, eficiência, produtividade. O dispositivo biopolítico da economia coloca a questão de como governar de forma útil a vida humana, não para benefício da vida, senão para consecução de lucros. Essa lógica foi derivando numa crescente sujeição da vida humana ao conceito de recurso biológico com potencialidades inesgotáveis. Evidentemente que esse processo acontece num campo de tensões, resistências, cessões e ajustes de todas as partes implicadas. Mas o dispositivo biopolítico almeja o máximo de lucratividade com o mínimo de custo. Nessa equação a vida humana é capturada como recurso útil, e o nível de exploração será inversamente proporcional à sua resistência. Neste marco, o poder soberano, próprio das sociedades autoritárias pré-modernas, não mais era eficiente para governar capilarmente a vida humana. Fazia-se necessário desenvolver outras técnicas e dispositivos de governo que não fossem mais percebidos como autoritários, no sentido clássico do termo. Era prioritário criar dispositivos e técnicas que governassem a liberdade humana. Esta aparente aporia, governar a liberdade, constitui-se no âmago das técnicas de administração modernas, que são técnicas de governo da liberdade. Elas são eficientes quando conseguem que os sujeitos se sujeitem “livremente” às necessidades institucionais ou estruturais.
Foucault alcunhou uma expressão para indicar a diferença entre o poder soberano e o biopoder, que se tornou muito conhecida: O poder soberano faz morrer e deixa viver, o biopoder faz viver e deixa morrer.

Sujeição ou exclusão
Para conseguir este complexo objetivo, governar a liberdade, utilizou-se, entre outras, a técnica da norma. A norma, diferentemente da lei, tende a regular capilarmente os comportamentos. A norma estabelece os procedimentos corretos para que um sujeito seja aceito numa instituição ou processo. Ela regula, no mínimo detalhe possível, todas as operações a serem desenvolvidas no tempo certo, no espaço concreto, com a eficiência desejada, atingindo as metas propostas, etc. O dilema do sujeito moderno é aceitar as normas que o sujeitam ou ser excluído. Ele deve decidir, mas a alternativa que lhe resta, a exclusão, é sempre a pior, por isso tende a sujeitar-se aos processos de normalização de conduta exigidos.
Não cabe dúvida de que vivemos em sociedades de normalização. Todas as instituições aprimoraram ao máximo as técnicas de normatização dos sujeitos nos diversos aspectos de sua vida. O tempo, o espaço, os resultados, a produção, os deslocamentos, etc., tudo é normatizado ao detalhe para que os indivíduos se ajustem institucionalmente às metas desejadas. Caso contrário, estão fora da normalidade definida, o que acarretará sua exclusão institucional por não ajustar-se à norma exigida.

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