por Rodrigo Constantino
O caso da mulher que morreu linchada no Guarujá após boato na internet é chocante em todos os aspectos:
A Polícia
deve ouvir nesta terça-feira o responsável pelo site “Guarujá Alerta”,
que publicou um retrato falado de uma suposta sequestradora de crianças,
que levou um grupo de moradores a espancar e causar a morte da dona de
casa Fabiane de Jesus, de 33 anos, no Guarujá, litoral sul. Fabiane foi
confundida com a suposta criminosa no sábado e morreu na manhã de
segunda-feira. O corpo da dona de casa será enterrado nesta terça-feira,
no Cemitério Jardim da Paz, Guarujá. Ninguém ainda foi preso. Os
suspeitos de agredir Fabiane ainda não foram identificados pela polícia.
A
sequestradora, segundo notícia compartilhada por uma página do Facebook,
praticaria rituais de magia negra. A agressão teria sido motivada pela
publicação em uma rede social. Segundo a polícia, Fabiane apresentava
problemas mentais e não consta qualquer ocorrência ou acusação contra
ela. A Polícia também não confirma sequestro e morte de crianças em
rituais de magia negra no Guarujá.
Especialistas alegam que a tragédia é o
resultado da falência do estado, do sistema de segurança e justiça, da
falta de credibilidade das instituições democráticas. Esse tipo de
descrença no processo legal de punição acabaria gerando um clima de
“justiça com as próprias mãos”. Concordo, como já disse aqui.
Um dos aspectos é sem dúvida esse: a
anomia e a impunidade produzem justiceiros que se julgam acima das leis e
das autoridades, o que apenas reforça a sensação de anomia e pode
acabar produzindo um regime autoritário para “colocar ordem na bagunça”.
Os liberais jamais podem compactuar com
isso, por defender o estado democrático de direito, o império das leis.
Foram conquistas do liberalismo prerrogativas como o habeas corpus, por
exemplo, que servem para proteger o indivíduo dos abusos estatais.
“Todos são inocentes até que provem o contrário” é uma máxima liberal
também.
Mas se é preciso ter instrumentos legais e
constitucionais para proteger o indivíduo das autoridades, também é
preciso protegê-lo da turba. E aqui mora o perigo: como fazer isso,
especialmente na era das redes sociais? Essa desgraça ocorrida com
Fabiane acende outro debate delicado: o “povo” pode ser bastante
violento, e a internet pode alimentar isso.
Muitos depositaram uma fé ingênua nas
redes sociais, como se fossem trazer a liberdade ao mundo. Mas elas são
apenas instrumentos, e servem para o bem ou para o mal. A natureza
humana, na visão dos mais pessimistas (ou realistas), não é flor que se
cheire.
Essa é a premissa dos conservadores e
muitos liberais de forma geral, ao contrário de boa parte da esquerda
que acredita, com Rousseau, no “bom selvagem” e na perfectibilidade
humana. Para os conservadores, a metáfora do “pecado original”, do “anjo
caído”, captura melhor quem somos: bestas humanas em potencial.
Foi Joseph Conrad quem melhor descreveu isso em seu magnífico Coração das Trevas,
sobre o imperialismo belga no Congo. Quando se suspende os freios da
civilização, o que resta é apenas “o horror, o horror”. Algo difícil até
de colocar em palavras.
Não vamos esquecer que as pessoas sempre
gostaram de assistir enforcamentos em praças públicas, ou de frequentar o
Coliseu. A maioria escolheu crucificar Cristo e soltar o ladrão
Barrabás. Ao sabor das fofocas ou de acusações muitas vezes levianas, a
psicologia das massas se encarrega de pegar a fagulha e transformá-la em
incêndio. As redes sociais modernas potencializam o fenômeno. Gustave
Le Bon, em seu livro sobre a psicologia das multidões, escreveu:
“Uma massa é como um selvagem; não está
preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a
realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de
unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o
mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos
mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado
grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é
acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os
indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são
contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização.
Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro,
isto é, uma criatura agindo por instinto”.
Justamente por isso delegamos ao estado a
função básica de cuidar da justiça. A vingança é institucionalizada
para impedir a “justiça com as próprias mãos”. O grande problema é
quando a confiança no estado está totalmente esgarçada, e quando a
internet produz um clima ainda maior de linchamento público. Para a
situação sair de controle basta um catalisador qualquer. E mais uma
tragédia ocorre.
Não há soluções mágicas. O que os
liberais devem fazer é continuar lutando pelo aprimoramento das nossas
instituições, para que o estado possa resgatar a credibilidade de cuidar
direito desta que é sua função mais básica, talvez a única realmente
necessária: a justiça.
E seguir lembrando que o homem guarda,
dentro de si, uma besta à espreita, que pode ser despertada a qualquer
momento, ainda mais na era das redes sociais, quando o linchamento
público virtual ganha proporções alarmantes em questão de minutos. Para
esse linchamento deixar de ser virtual e passar a ser físico basta a
vítima ser identificada em local público. Aí temos “o horror, o horror”.
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