Ter como fundamento o poder pelo poder – sem qualquer justificativa ou promessa, baseada num mundo futuro melhor – requer o duplipensar. O conceito foi introduzido por George Orwell (Eric Arthur Blair) no livro Nineteen Eighty-Four (1949).
Quase 70 anos depois estamos vendo, no Brasil de 2016, como o conceito se aplica com justeza. Quando militantes de um partido defendem que o vice Michel Temer sofra processo de impeachment porque, supostamente, teria pedalado e, ao mesmo tempo, sustentam que a presidente Dilma não pedalou (ou se pedalou isso não seria motivo para seu impedimento), sendo que o vice assinou decretos já elaborados pelo governo durante os pouquíssimos dias em que substituiu a titular, a contradição é inexplicável a não ser que lancemos mão do conceito de duplipensar.
Quando militantes do PT dizem que o impeachment é golpe, sendo que o PT apresentou, de 1990 a 2002, nada menos do que 50 pedidos de impeachment, de todos os presidentes que antecederam Lula no período, isso também não pode ser explicado a não ser pelo duplipensar.
E quando o PT diz que a culpa das dificuldades do governo Dilma é das elites, sendo que o partido governou durante mais de uma década em estreita associação com as elites, inclusive com as empreiteiras cujos dirigentes estão agora condenados e presos, como se a Odebrecht e a Andrade Gutierrez (para não falar dos aliados, de Sarney a Collor, passando por Jader e centenas de outros caciques tradicionais da política) não fossem elite, novamente não há justificativa racional para esse tipo de contorção do pensamento e exílio da lógica e da verdade, senão o exercício do duplipensamento.
O fato é que não se pode decifrar o comportamento dos militantes do partido do governo sem o auxílio do conceito orwelliano de duplipensar.
ENTENDA O QUE É DUPLIPENSAR
Vejamos apenas dois pequenos trechos do livro 1984 de George Orwell (1949):
“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar”.
“Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto sabe que está aplicando um truque na realidade; mas pelo exercício do duplipensar ele se convence também de que a realidade não está sendo violada. O processo tem de ser consciente, ou não seria realizado com a precisão suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa. O duplipensar é a pedra basilar do Ingsoc (Socialismo Inglês), já que a ação essencial do Partido é usar a fraude consciente ao mesmo tempo que conserva a firmeza de propósito que acompanha a honestidade completa. Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente, esquecer qualquer fato que se haja tornado inconveniente, e depois, quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do esquecimento por tempo suficiente à sua utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a realidade que se nega – tudo isso é indispensável. Mesmo no emprego da palavra duplipensar é necessário duplipensar. Pois, usando-se a palavra admite-se que se está mexendo na realidade; é preciso um novo ato de duplipensar para apagar essa percepção e assim por diante, indefinidamente, a mentira sempre um passo além da realidade. Em última análise, foi por meio do duplipensar que o Partido conseguiu – e, tanto quanto sabemos, continuará, milhares de anos – deter o curso da história”.
Em que medida pode-se afirmar que o principal fundamento da distopia imaginada por Orwell em 1984 era o duplipensar (duplipensamento)?
Pode-se dizer que sem o duplipensar (duplipensamento) não seria possível manter a ditadura do Grande Irmão (quer dizer, do Partido Interno) pois as pessoas, mais cedo ou mais tarde, descobririam que a realidade estava sendo continuamente falsificada.
Pode-se dizer ainda que o regime monstruoso de 1984 não teria a menor estabilidade sem a inoculação dessa infecção da razão pela qual a violação da lógica era rigorosamente lógica, justificando qualquer ação de interesse do partido se manter no poder.
Mas é preciso ver que o principal fundamento da distopia orwelliana é ter substituído os sonhos utópicos de igualdade, liberdade e abundância e as concessões para alcançá-los, pelo desiderato brutal, imposto por uma realpolitiklevada às suas últimas consequências, sem qualquer justificativa futura, do poder pelo poder (ou seja do poder como fim em si mesmo). Como disse O’Brien, sacerdote-torturador do Partido Interno, explicando ao preso Winston, do Partido Externo, os reais objetivos do Partido no poder:
“O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. O que significa “poder puro” compreenderá, daqui a pouco. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começou a me compreender?”
O DUPLIPENSAR HOJE NO BRASIL
No Brasil dos últimos anos estamos, de certo modo, realizando o romance distópico de Orwell. Temos no poder um partido que abandonou todas as referências éticas inspiradas em alguma utopia generosa para abraçar um misto de gramscismo com maquiavelismo cuja consequência prática nada mais é do que o poder pelo poder.
Mas é o duplipensar que permite que pessoas razoáveis, inteligentes, ilustradas, adotem explicações sórdidas e evidentemente falsas e que elas sabem ser falsas, mas ao mesmo tempo acreditem, em algum circuito de sua mente enferma, ser verdadeiras, o que significa que são verdadeiramente falsas, quer dizer, falsamente verdadeiras. Isto é duplipensar!
As elites estariam dando um golpe na democracia porque não aceitam pobre viajando de avião e, enquanto isso, o chefe do partido, supremo representante dos pobres, mantém profundos laços de amizade (além de negócios escusos) com essas mesmas elites, só se hospeda em hotéis cinco estrelas e… só viaja de jato particular. Ele também não gosta de viajar de avião junto com pobre e por isso não embarca em aeronave de carreira? É ocioso perguntar. Não há resposta racional. Só o duplipensar explica como uma pessoa consegue “ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias”.
Existe algo que em nada melhora a situação para os escroques que se apoderaram dessas terras e mentes, e nem dos que perderam a canoa. Não melhora, mas explica em grande parte o poder de convencimento que nos assombra, quando vemos pessoas de inegáveis estofos racionais e culturais defendendo a escórias. Por anos a fio, por que não dizer, séculos, essas terras foram o quintal da exploração e domínio dos coronéis sobre os menos servidos. Todos, sem exceção, usaram o poder para seus próprios benefícios, dividindo uma pequena parcela aqui e ali, minimamente como que para nãyo dar na pinta e se sustentarem o suficiente e sempre na dominação. Claro que aqueles que estavam de fora e desejavam o poder tinham de ter uma ideia boa, inédita e que fizesse com que a base desse sistema, a plebe suada, pudesse ser usada sobretudo como propaganda deles próprios, algo como servos que escolhessem o chicote e a parte do lombo onde mais apreciaria a sova. A grande sacada foi fazê-los pensarem de si mesmos como protagonistas. Daí a escolher um personagem, bronco, do povo, com história de luta e passado de inegável pobreza, de preferência cuja mãe "tenha nascido analfabeta" foi um pulo... o possivel plano: um pai para os pobres, que distribui migalhas, mas migalhas para todos carentes, ao máximo, usando a necessidade e demanda como o ardil para sua propaganda. Transformando toda a massa em cães fiéis e defensores daquela mão que lhe conceda o biscoito canino, mas que sobretudo e infalivelmente, morda os traseiros e COXINHAS dos contrários e mais importante ainda, role e finja de morto quando solicitado. Inegável... a praga que sempre nos dominou, que rosna a deposição do comando, poderia ter feito isso antes. Não fez, e agora luta e brada desesperadamente para voltar à ponte de comando. Mas não adianta prometer o que o inimigo sabiamente concedeu. Foi a mais brilhante demonstração de aprendizado e incremento do "rouba mas faz". Surfando numa onda efêmera de crescimento mundial ou não, pagando carona em um processo iniciado pelo predecessor ou não, o fato é que eles souberam convencer a turma da foice e do martelo, da inchada, ancinho e facão que "de onde veio essa bolsa, pode vir mais". E o indiscutivel ganho social hoje é o forro que a intelectualidade usa de argumento, enquanto a fanfarra da parada do triunfo lhes cobre a chance e de ver o custo da desordem. Quebrar as condições econômicas de sustentação do país ou transformar a maior empresa estatal em titica sempre podera ser dedicada a uma sórdida construção de um projeto da elite para desconstrução da evolução social ou qualquer eufemismo que se possa usar. Articular os togados nunca foi difícil porque o sistema organiza-se para que as leis sustentem o que aí se colocou; escritas por quem pôs o coturno na jugular daquele que deve lhe obedecer. De lá e de cá, do lado azul ou do vermelho, do Verde ou do amarelo, serve a máxima de que em puteiro não há freiras, a menos que seja para sustentar fetiches convenientes.
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