domingo, 29 de novembro de 2015

Londres, a Meca dos corruptos

27/03/2015


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Como o sistema financeiro internacional converteu capital britânica no centro global de reciclagem para riqueza de políticos inescrupulosos, ditadores e crime organizado  


A conta não fecha. Quase todos os dias, jornais e televisões inglesas estão repletos de histórias que cheiram a corrupção. Contudo, no ranking de corrupção da ONG “Transparência Internacional”, a Grã-Bretanha ocupa o 14º lugar entre 177 nações (1) – significando que estaria entre as nações mais bem geridas da Terra. Ou os 13 países que vêm antes da Grã-Bretanha são espetacularmente corruptos, ou há algo errado com esse ranking da “Transparência Internacional”.

Sim, o problema é o índice. As definições de “corrupção” de que se serve são as mais estreitas e seletivas. Nos países ricos, práticas comuns que sem dúvida poderiam ser consideradas corruptas são simplesmente excluídas; já práticas comuns em países pobres são enfatizadas.

Esta semana foi publicado um livro bastante inovador, editado por David Whyte: How Corrupt Is Britain? [Quão Corrupta é a Grã-Bretanha?] (2). Deveria ser lida por todos aqueles que acham que Grã-Bretanha merece a posição em que aparece no ranking da “Transparência Internacional”.
Existiria ainda um setor bancário comercial na Grã-Bretanha, não fosse a corrupção? Pense na lista dos escândalos: pensões subfaturadas, fraudes hipotecárias, o embuste do seguro de proteção de pagamentos, a manipulação da taxa interbancária Libor, as operações com informações privilegiadas e tantos outros. Depois, pergunte-se se espoliar as pessoas é uma aberração – ou o próprio modelo de negócio.

Nenhum dirigente de banco foi indiciado, sequer desqualificado ou demitido por práticas que contribuíram para desencadear a crise financeira: a legislação que os teria coibido ou enquadrado em crimes já havia sido paulatinamente esvaziada, antes, por sucessivos governos.

Um ex-ministro do atual governo britânico dirigia o banco HSBC (2) quando este praticava sistematicamente crimes de evasão fiscal (3) e lavagem de dinheiro do narcotráfico, além de garantir serviços a bancos da Arábia Saudita e Bangladesh ligados ao financiamento do terrorismo (4). Ao invés de processar o banco, o diretor da Controladoria Fiscal do Reino Unido passou a trabalhar para ele, ao se aposentar (5).

A City de Londres, que opera com o apoio dos territórios britânicos de além-mar e postos avançados da Coroa, é líder mundial dos paraísos fiscais, controlando 24% de todos os serviços financeiros (6) oferecidos offshore.

A cidade oferece ao capital global um sofisticado regime de sigilo, dando assistência não apenas a sonegadores de impostos, mas também a contrabandistas, fugitivos de sanções e lavadores de dinheiro. Como disse a juíza de instrução francesa Eva Joly, ao queixar-se que a City “nunca forneceu sequer uma ínfima evidência útil a qualquer magistrado estrangeiro” (7).
Reino Unido, Suíça, Cingapura, Luxemburgo e Alemanha estão todos entre os países menos corruptos na lista da Transparência Internacional. Mas figuram também na lista da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network) como administradores dos piores regimes sigilosos de investimento e paraísos fiscais (8). Por alguma estranha razão, nada disso é levado em conta para definir o ranking da ONG Transparência Internacional.

A Iniciativa de Financiamento Privado (Private Finance Initiative) tem sido usada por sucessivos governos britânicos para iludir os cidadãos quanto à extensão dos seus empréstimos, enquanto canalizam dinheiro público para corporações privadas. Envolta em segredo, recheada de propinas ocultas (9), a IFP tem fisgado hospitais e escolas sempre com dívidas impagáveis, enquanto impede que a população controle os serviços públicos.

Espiões do Estado lançam-se à vigilância (10) em massa, ao mesmo tempo em que a polícia trabalha servindo-se de identidades de crianças mortas, mente em tribunais para fornecer provas falsas e incita crianças ao ativismo extremista, além de infiltrar-se em grupos pacíficos, tentando destruí-los (11). As forças policiais já mentiram sobre o desastre de Hillsborough (12); já protegeram pedófilos ativos (13) –inclusive Jimmy Savile e, como hoje se afirma, toda uma gama de dirigentes políticos suspeitos também do assassinato de crianças. Savile foi protegido também pelo Serviço Nacional de Saúde (National Health Service) e pela BBC – que demitiu a maioria dos que tentaram expô-lo (14) e promoveu os que tentaram perpetuar o ocultamento dos fatos.

Há o problema de intocado sistema de financiamento político, que permite a compra dos partidos (15) pelos mais ricos. Há o escândalo das escutas telefônicas e dos jornais que subornam policiais; da privatização dos Correios britânicos, o Royal Mail (16), vendido a preços insignificantes; o esquema da “porta giratória”, que permite a empresários e empregados de grandes empresas, depois de eleitos, ficar em posição de redigir leis que defendem seus próprios interesses ou dos respectivos patrões; o assalto à seguridade social e aos serviços prisionais, por empresas privadas terceirizadas; a fixação, por empresas, do preço da energia; o roubo diário perpetrado pela indústria farmacêutica, e outras tantas dúzias de casos semelhantes. Nada disso é corrupção? Ou são operações ‘sofisticadas’ demais para serem expostas sob o seu verdadeiro nome, “corrupção”?

Entre as fontes usadas pela Transparência Internacional para produzir seu ranking estão o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial. Confiar no Banco Mundial para aferir corrupção é como confiar em Vlad, o Empalador, para aferir direitos humanos. Orientado pelo princípio um dólar-um voto, controlado pelas nações ricas e atuando nas nações pobres, o Banco Mundial financiou centenas de elefantes brancos que enriqueceram enormemente as elites mais corruptas e beneficiaram capitais estrangeiros (17), ao mesmo tempo em que expulsava pessoas das próprias terras e deixava países afogados em dívidas impagáveis. Para espanto geral, a definição do Banco Mundial para a corrupção é tão limitada que não considera esse tipo de prática.

E o Fórum Econômico Mundial estabelece sua escala de corrupção a partir de uma pesquisa que consulta executivos mundiais (18) — precisamente eles, cujas empresas são beneficiárias diretas do tipo de práticas que estou listando nesse artigo. As perguntas se limitam ao pagamento de propinas e à aquisição corrupta de fundos públicos por interesses privados (19), excluindo o tipo de corrupção que prevalece nas nações ricas. Quando entrevista cidadãos comuns, a Transparência Internacional segue a mesma linha: a maior parte das perguntas específicas concerne ao pagamento de propinas (20).

Quão corrupta é a Grã Bretanha? Tão estreitas concepções de corrupção são parte de uma longa tradição de retratá-la como algo confinado a países fracos, que precisam ser salvos por “reformas” impostas pelos poderes coloniais e, mais recentemente, organismos tais como Banco Mundial e FMI. Essas “reformas” significam austeridade, privatização, terceirização e desregulamentação. Elas tendem a sugar dinheiro das mãos dos pobres para as mãos das oligarquias nacionais e globais.

Para organizações como o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, há pouca diferença entre o interesse público e os interesses das corporações globais. O que pode parecer corrupção de qualquer outra perspectiva é visto por eles como fundamentos econômicos. O poder das finanças globais e a imensa riqueza da elite global estão fundadas em corrupção, e os beneficiários têm interesse em enquadrar a questão para desculpar-se. Sim, muitos países pobres sofrem o flagelo do tipo de corrupção que é o pagamento de propinas a servidores públicos. Mas o problemas que atormentam a Inglaterra são mais profundos. Quando o sistema já pertence à elite, propinas são supérfluas.

NOTAS
1. https://www.transparency.
2. http://www.plutobooks.com/
3. http://www.theguardian.com/
4. http://www.hsgac.senate.
5. http://www.theguardian.com/
6. John Christensen, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.
7. Nicholas Shaxson, 2011. Treasure Islands: Tax Havens and the Men Who Stole the World. Random House, London. http://
8. http://www.
9. http://www.theguardian.com/
10. http://www.theguardian.
11. http://www.theguardian.
12. Sheila Coleman, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.
13. http://www.theguardian.
14. http://www.theguardian.
15. http://www.theguardian.
16. http://www.theguardian.
17. http://www.
18. http://www3.weforum.org/
19. http://www.ticambodia.org/
20. http://www.transparency.














O mito interesseiro da “autorregulação”

26/11/2015


151126-Autorregulação2 

Aos poucos, Estados transferem poder de regulamentar vida econômica e financeira aos “mercados”. Se não for freada, tendência destruirá direitos sociais e natureza

Por George Monbiot | Tradução: Gabriel Filippo Simões | Imagem: Jack Livine


O que os governos aprenderam com a crise financeira? Eu poderia escrever uma coluna falando sobre isso. Ou poderia explicar com uma única palavra: nada.

Na verdade, nada é muito generoso. As lições aprendidas são contra-lições, anticonhecimento, novas políticas que dificilmente poderiam ser melhor concebidas para assegurar a recorrência da crise, dessa vez com acréscimo de impulso e menos remédios. E a crise financeira é apenas uma das múltiplas crises – de arrecadação, gasto público, saúde pública e, acima de todas, ecológica – que as mesmas contra-lições fazem acelerar.

Volte um pouco atrás e você verá que todas essas crises têm origem na mesma causa. Atores com grande poder e alcance global são liberados do império das leis. Isso acontece devido à corrupção fundamental no núcleo da política. Em quase todas as nações, os interesses das elites econômicas tendem a pesar mais na balança dos governos do que os interesses do eleitorado. Bancos, corporações e proprietários de terras exercem um poder enigmático, operando silenciosamente entre os membros da classe política. A governança global está se tornando algo semelhante a uma reunião infinita do Clube de Bilderberg1.

O professor de direito Joel Bakan, num artigo no Cornell International Law Journal, argumenta que dois movimentos alarmantes estão acontecendo simultaneamente. De um lado, os governos vêm revogando leis que restringem a ação de bancos e corporações, sob o argumento de que a globalização enfraquece os Estados, tornando impossível uma legislação efetiva. Como alternativa, eles dizem, nós devemos confiar na autorregulação daqueles que exercem o poder econômico.
Por outro lado, os mesmos governos concebem novas leis draconianas para fortalecer o poder da elite. Às corporações são dados os direitos de pessoas físicas. Seus direitos de propriedade são reforçados. Aqueles que protestam contra elas estão sujeitos ao controle e à vigilância policial. Ah, o poder do Estado continua muito bem a existir – quando é conveniente…

Muitos de vocês já terão ouvido falar sobre a Parceria Transpacífica (TPP) e da proposta da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). São, supostamente, acordos de comércio – mas pouco têm a ver com comércio e, sim, com poder. Ampliam o poder das corporações, enquanto reduzem o poder dos parlamentos e do Estado de Direito. Tais acordos não poderiam ser melhor concebidos para exacerbar e universalizar nossas múltiplas crises – financeira, social e ambiental. Mas algo ainda pior está por vir, o resultado de negociações conduzidas, mais uma vez, em segredo: um Acordo sobre o Comércio de Serviços (TiSA), cobrindo a América do Norte, a União Europeia, Japão, Austrália e muitas outras nações.

Apenas através do Wikileaks temos alguma ideia do que está sendo planejado. Este acordo poderia ser usado para forçar nações a aceitar novos produtos e serviços financeiros, a aprovar a privatização de serviços públicos e a reduzir os padrões de precaução e provisão. Esta parece ser a maior agressão à democracia arquitetada nas últimas duas décadas. O que significa muito.

O Estado, em sua autoflagelação, proclama que não tem mais poder. Ao mesmo tempo, aniquila sua própria capacidade de legislar – doméstica e internacionalmente. Como se a última crise financeira não tivesse ocorrido, e como se não estivesse ciente de sua causa, o ministro das Finanças britânico, George Osborne, em seu mais recente discurso na Prefeitura de Londres, disse à sua plateia de banqueiros que “a principal exigência na nossa renegociação é que a Europa interrompa a regulação onerosa e prejudicial”. O primeiro-ministro David Cameron vangloriou-se de comandar “o primeiro governo na história moderna que, ao fim de sua legislatura, possui menos regulações em prática do que havia no começo”.

Isso, num mundo de crescente complexidade e onde crescem os crimes corporativos, é pura imprudência. Mas não tenha medo, eles dizem: o poder econômico não precisa se sujeitar ao Estado de Direito. Ele consegue se regular por si próprio.

Alguns de nós há tempos suspeitamos que isso seja uma grande tolice. Mas, até agora, a suspeita era tudo que tínhamos. Esta semana foi publicada o primeiro estudo global sobre autorregulação. Tal estudo foi encomendado pela Britain’s Royal Society for the Protection of Birds2, mas se estende a todos os setores, desde agentes de pequenos empréstimos até criadores de cães. E ele mostra que em quase todos os casos – 82% dos 161 projetos avaliados, medidas voluntárias fracassaram.
Por exemplo, quando a União Europeia buscou reduzir o número de pedestres e ciclistas mortos por veículos, a instituição poderia ter simplesmente votado uma lei instruindo os fabricantes de automóveis a mudar o design dos para-choques e capôs, a um custo aproximado de 30 por carro. Ao invés disso, confiou-se num acordo voluntário com a indústria. O resultado foi um nível de proteção 75% menor do que uma lei teria induzido.

Quando o governo do País de Gales introduziu uma cobrança de 5 centavos para sacolas plásticas, o seu uso foi reduzido em 80% de um dia para outro. O governo inglês afirmou que a autorregulação por parte dos varejistas apresentaria o mesmo efeito. O resultado? Uma grande redução de… 6%. Depois de sete anos desperdiçados, o governo sucumbiu à lógica óbvia e introduziu a cobrança.
Projetos voluntários para coibir a publicidade de junk food para crianças na Espanha, para reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa no Canadá, para economia de água na California, para salvar albatrozes dos barcos de pesca na Nova Zelândia, para a proteção de pacientes de cirurgias plásticas no Reino Unido, para impedir o marketing agressivo de remédios psiquiátricos na Suécia: apenas fracassos. O que o Estado poderia ter feito com uma simples canetada, com baixo custo e de maneira eficiente é deixado de lado em prol de ações desastradas das indústrias que, mesmo quando sinceras, são minadas por aproveitadores e oportunistas.

Em diversos casos, as empresas imploraram por novas leis que elevassem os padrões na indústria. Por exemplo, aqueles que produzem embalagens plásticas para silagem para fazendeiros tentaram fazer com que o governo do Reino Unido elevasse a taxa de reciclagem. Empresas de jardinagem queriam regulamentações para eliminar gradualmente o uso de turfa. Os governos recusaram. Teria sido o resultado de ideologia cega ou escusos interesses próprios – ou ambos? Os maiores doadores de partidos políticos tendem a ser os piores empresários, usando seu dinheiro para manter as más práticas legais (vide o caso Enron).

Como os partidos que eles financiam se curvam aos seus desejos, todos são forçados a adotar seus baixos padrões. Suspeito que os governos, assim como qualquer um, sabem que a legislação é mais eficiente e eficaz que a autorregulação e que por isso mesmo não a empregue.
Imobilizar o eleitorado, liberar os poderosos: essa é a fórmula perfeita para uma crise multidimensional. E nós estamos colhendo seus frutos.

1N. T.: As reuniões do Clube de Bilderberg acontecem anualmente com o objetivo de fomentar os diálogos entre EUA e Europa. A conferência conta com a presença de líderes políticos, acadêmicos, empresários discutindo informalmente tendências globais. A lista dos participantes é divulgada, mas ninguém tem acesso ao conteúdo da conferência. Ver mais em: http://ow.ly/V5rzK.

2 N. T.: Sociedade Real Britânica de Proteção dos Pássaros