Blog de Maria Elisa Castellanos Solá. Sobre o Homem, o Ser, a Sociedade, as Circunstâncias e o Futuro. Um arquivo pessoal de caráter multidisciplinar que compartilho com o público.
segunda-feira, 28 de julho de 2014
Dívida da Argentina não tem justificativa legal, nem administrativa, nem financeira. Entrevista especial com Maria Lúcia Fattorelli
Terça, 15 de julho de 2014
“O exemplo argentino evidencia o imenso poder do setor financeiro privado no mundo atual; mostra como a corte suprema do país mais rico do mundo pende em defesa de um questionável fundo abrigado em paraíso fiscal, em detrimento de um país”, diz a auditora fiscal.
“O exemplo argentino evidencia o imenso poder do setor financeiro privado no mundo atual; mostra como a corte suprema do país mais rico do mundo pende em defesa de um questionável fundo abrigado em paraíso fiscal, em detrimento de um país”, diz a auditora fiscal.
Foto: www.auditoriacidada.org.br |
“Existem diversas contradições nesse episódio”, declaraMaria Lúcia Fattorelli ao comentar a dívida pública argentina, que já alcança o montante de 1,3 bilhão de dólares. Entre elas, aponta, o “absurdo evidenciado pela condenação de um país por uma decisão proferida pelo poder judiciário de outro país, ignorando a soberania nacional que cada país possui”.
Segundo a auditora fiscal, essa situação “revela a ausência de tribunais internacionais independentes e transparentes, que seriam os fóruns legítimos para analisar esse tipo de conflito”.
A dívida da Argentina foi negociada, mas alguns credores não aceitam a negociação e cobram do país o pagamento integral da dívida, o qual foi determinado pela Justiça norte-americana. Segundo Maria Lúcia, a decisão judicial foi “tendenciosa” e “pendeu em favor de especuladores que se aproveitaram da crise enfrentada pela Argentina a partir de 2001, adquiriram títulos da dívida pública daquele país a preços irrisórios, não se apresentaram para efetuar a renegociação realizada em 2005 e ingressaram na Justiça para reivindicar o pagamento do valor nominal integral daqueles títulos, acrescido dos juros incidentes sobre o valor nominal desde a sua emissão. Ou seja, reivindicaram a restituição de algo que nunca emprestaram, uma reivindicação infame e completamente ilegítima”.
Na avaliação da auditora fiscal, as dívidas públicas dos países têm permitido a interferência do setor financeiro em políticas e decisões governamentais estratégicas. “Esse poderio financeiro sobre as nações é obtido, principalmente, por intermédio do financiamento de ditaduras ou de campanhas eleitorais ‘democráticas’, conseguindo, dessa maneira, dominar o poder político e subordiná-lo aos interesses do capital financeiro para, em seguida, alcançar as modificações das estruturas legais em seu favor e de acordo com os seus interesses”, assinala.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ela explica as razões da dívida pública argentina e afirma que no Brasil também se assiste a um processo de endividamento público, “que inicia com financiamento de campanhas, seguido da adoção de modelo econômico e medidas que favorecem o setor financeiro, principalmente através do Sistema da Dívida. Estamos pagando dívidas ilegais e negando direitos sociais básicos. O Orçamento Geral da União de 2014 destina 42% dos recursos para juros e amortizações de uma dívida que nunca foi auditada, em flagrante violação à Constituição Federal de 1988, que determinou a realização da auditoria da dívida brasileira”.
Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública – CAIC no Equador em 2007-2008. Participou ativamente nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a dívida realizada no Brasil. É autora deAuditoria da Dívida Externa. Questão de Soberania (Contraponto Editora, 2003).
Confira a entrevista.
Foto: sindifiscopb
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IHU On-Line - Quais são as principais contradições em torno da dívida da Argentina e da maneira como a questão está sendo conduzida, já que o país diz ter pago o valor negociado, mas a Justiça americana exige o pagamento integral da dívida?
Maria Lúcia Fattorelli - Existem diversas contradições nesse episódio. Creio que a mais relevante decorre do absurdo evidenciado pela condenação de um país por uma decisão proferida pelo poder judiciário de outro país, ignorando a soberania nacional que cada país possui. Essa contradição revela a ausência de tribunais internacionais independentes e transparentes, que seriam os fóruns legítimos para analisar esse tipo de conflito.
Outra grande contradição é o flagrante privilégio da tendenciosa decisão judicial que pendeu em favor de especuladores que se aproveitaram da crise enfrentada pelaArgentina a partir de 2001, adquiriram títulos da dívida pública daquele país a preços irrisórios, não se apresentaram para efetuar a renegociação realizada em 2005 e ingressaram na Justiça para reivindicar o pagamento do valor nominal integral daqueles títulos, acrescido dos juros incidentes sobre o valor nominal desde a sua emissão. Ou seja, reivindicaram a restituição de algo que nunca emprestaram, uma reivindicação infame e completamente ilegítima. A justiça norte-americana deu ganho de causa a esse grupo de especuladores, transformando carniça podre em filé mignon, referendando a jogada desses especuladores, não por acaso apelidados de “abutres”, e humilhando um país soberano.
Outra contradição está relacionada ao risco de essa decisão da Justiça norte-americana afetar os termos da renegociação feita pela Argentina em 2005, e impor ônus abusivo ao país. Esse risco decorre de cláusulas que regem os títulos de dívida externa argentina. Tais cláusulas estão presentes nas emissões de títulos de dívida externa de diversos países, inclusive o Brasil, pois esses contratos são padronizados por um reduzido grupo de bancos privados internacionais que comandam o Sistema da Dívida. Uma dessas cláusulas tenta impedir que o país emissor dos títulos negocie de forma separada com determinados grupos de credores. É a denominada cláusula“pari passu”, que estabelece que qualquer ganho obtido por um grupo de detentores de títulos tem que ser estendido a todos os demais detentores. Por causa dessa cláusula, os 92% de detentores de títulos que renegociaram a dívida em 2005, com 75% de deságio, poderão reivindicar a diferença. Isso seria um absurdo completo, porque aquela renegociação foi feita com taxas de juros elevadíssimas, vinculadas ao crescimento do PIB argentino, para compensar o deságio. E a grande contradição decorre do fato de que os “abutres” nem participaram daquela negociação.
Enfim, são muitas contradições, e elas não tiveram início em 2001, mas muito antes. Estão presentes em toda a trajetória do processo de endividamento do país.
"Outra contradição está relacionada ao risco de essa decisão da Justiça norte-americana afetar os termos da renegociação feita pela Argentina em 2005, e impor ônus abusivo ao país" |
IHU On-Line - Você poderia explicar melhor essa trajetória da dívida argentina que mencionou?
Maria Lúcia Fattorelli - A trajetória da dívida externa argentina é muito parecida com a de diversos países latino-americanos:
- origem em governos ilegítimos (ditaduras militares) em processos não transparentes, sem a devida comprovação da contrapartida da dívida, com suspeitas de que essa foi utilizada para financiar a própria ditadura;
- contratadas, em sua maior parte, com bancos privados internacionais, sujeitas a taxas internacionais de juros (Libor e Prime), que flutuam sob a influência dos próprios bancos privados internacionais que controlam o FED e a Associação de bancos de Londres;
- impactadas fortemente pela brutal elevação unilateral das taxas Libor e Prime, que saltaram de cerca de 5% ao ano para mais de 20% ao ano, provocando a crise de 1981 e a multiplicação da dívida por ela mesma;
- estatização de dívidas privadas, ou seja, transformação de dívidas privadas (de grandes empresas e bancos) em dívidas públicas, a cargo do Banco Central;
- suspeita de prescrição da dívida externa com bancos privados internacionais em 1992 (no Equador esse fato foi comprovado pela auditoria oficial realizada naquele país);
- transformação em títulos negociáveis no mercado, no processo denominado “Plano Brady”, realizado em 1994 em paraísos fiscais e repleto de ilegalidades;
- emissão continuada de títulos da dívida externa, com a participação dos bancos privados internacionais em todo o processo. Em seguida, tais títulos da dívida externa passaram a ser aceitos como “moeda” na compra de empresas privatizadas na década de 90.
Todos esses passos aqui resumidos se repetiram em diversos países.
Todos esses passos aqui resumidos se repetiram em diversos países.
É preciso ressaltar a intervenção do FMI diante da crise provocada pela alta unilateral dos juros a partir do início dos anos 80, marcada pela imposição de planos de ajuste fiscal para que “sobrassem” recursos para pagar a dívida aos bancos privados internacionais. A Argentina chegou a ser elogiada por ter obedecido de forma tão diligente às determinações do Fundo.
Essa contextualização é importante para compreender que a Argentina chegou à crise, em 2001, depois de acatar por anos seguidos as nefastas exigências do FMI que comprometeram a capacidade econômica do país. Além de tudo isso, no caso da Argentina uma decisão judicial inédita considerou ilegal grande parte da dívida pública.
IHU On-Line - Em que aspectos a dívida pode ser considerada ilegal?
Maria Lúcia Fattorelli - A dívida pública da Argentina já foi considerada ilegal pela Justiça daquele país, em 2000, na famosa “Causa Olmos”, assim denominada em homenagem ao jornalista argentino Alejandro Olmos que, em 1982, teve a iniciativa de impetrar ação judicial denunciando a ilegalidade da dívida.
Essa ação judicial levou a uma investigação que se aproxima de uma auditoria em vários aspectos, e foi concluída com uma importante sentença judicial, em junho de 2000, que reconheceu a existência de diversos delitos e irregularidades, além da clara responsabilidade do Fundo Monetário Internacional nas operações.
Por ocasião da elaboração do nosso livro Auditoria Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos, o filho do autor da mencionada ação judicial — Alejandro Olmos Gaona — contribuiu com importante relato que elenca uma série de irregularidades apontadas pelos peritos que participaram da investigação determinada pelo poder judiciário naquela ação:
"O setor financeiro deve existir para servir à economia real, e não o contrário" |
“As perícias determinaram:
a. Que a dívida externa não tinha justificativa legal, nem administrativa, nem financeira.
b. Os procedimentos utilizados pela autoridade econômica foram discricionários e revelam transgressões, irregularidades, comportamentos e gestões que configuram verdadeiros atos ilícitos.
c. As empresas públicas foram obrigadas a endividar-se, embora não tivessem necessidade de financiamento.
d. Em muitos casos as empresas estatais foram obrigadas a contrair empréstimos com bancos estrangeiros para pagar dívidas com bancos nacionais.
e. Os recursos correspondentes aos empréstimos em dólares tomados pelas empresas estatais iam diretamente para o Banco Central, que lhes entregava pesos (moeda argentina) que se desvalorizavam.
f. Houve malversação de fundos.
g. As reservas internacionais correspondiam a empréstimos do sistema bancário internacional que nunca chegavam ao país e eram aplicados nos mesmos bancos credores a uma taxa inferior, causando perda de enormes somas de dinheiro.
h. A dívida externa fraudulenta das empresas privadas foi assumida pelo Estado em 1982.
i. Os avais a empresas públicas e privadas concedidos pelo Banco Central tiveram que ser pagos por esta instituição, que nunca reclamou das empresas o seu reembolso.”
Constata-se, assim, que além de muitas ilegitimidades, ocorreram também flagrantes ilegalidades no processo de endividamento argentino.
IHU On-Line - Quais as razões de o país ter contraído uma dívida tão alta, considerada “materialmente impagável” por alguns economistas? É possível identificar quais são os mecanismos financeiros que fizeram a dívida da Argentina chegar ao atual patamar?
Maria Lúcia Fattorelli - A maior parte dessa dívida nunca foi contratada; ou seja, grande parte do que está registrado como “dívida” corresponde, na realidade, a diversos mecanismos que já mencionei nas respostas anteriores, sendo que os mais infames correspondem à geração de dívidas sem contrapartida durante a ditadura, a transformação de dívidas privadas em públicas e os processos de salvamento bancário por meio de geração de dívidas públicas.
Nesses processos o dinheiro nunca chega aos cofres públicos, mas o valor é contabilizado como “dívida”. Dívidas sem contrapartida se tornam um ônus insustentável. É por isso que defendemos a realização de completa auditoria do processo de endividamento público.
Processos de endividamento
Temos estudado o processo de endividamento em diversos países, e as evidências se repetem em vários deles. As dívidas são geradas por processos questionáveis, sem transparência, e sem qualquer contrapartida em bens, serviços ou benefícios para a coletividade. Em seguida, são multiplicadas por diversos mecanismos que provocam o seu contínuo crescimento, utilizando-se de juros excessivos, juros sobre juros, taxas diversas, comissões e custos financeiros abusivos; condições viciadas; sucessivos refinanciamentos que provocam o aumento da dívida, entre outras estratégias que provocam a autogeração contínua de novas dívidas. Esse esquema exige constante entrega de recursos para o pagamento de elevados juros, comissões e outros gastos, enquanto o saldo da dívida segue aumentando. A essa utilização do endividamento público às avessas denominamos “Sistema da Dívida”.
As dívidas geradas e multiplicadas dessa forma se tornam impagáveis ao longo dos anos e geram crises periódicas. E quando vem a crise, intervém o FMI, com seus planos de ajuste fiscal e antirreformas, baseadas em cortes de direitos sociais para priorizar o pagamento de dívidas públicas, aprofundando os problemas econômicos do país.
É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A AUDITORIA é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo.
O Equador provou a eficiência da ferramenta de auditoria. Em 2007 o presidente Rafael Correa editou o Decreto 472, mediante o qual criou uma comissão para realizar auditoria da dívida interna e externa equatoriana, nomeando diversos membros nacionais e seis internacionais. Todos os membros internacionais eram vinculados a alguma instituição relacionada ao questionamento do endividamento público, por isso tive a honra de ser uma dessas seis pessoas, representando a Auditoria Cidadã da Dívida. O resultado do trabalho foi impressionante, pois respaldou o ato soberano do presidente, que permitiu a anulação de 70% da dívida externa em títulos (bônus global 2012 e 2030). Os recursos liberados têm sido investidos principalmente em saúde e educação, como mostra o gráfico a seguir, que demonstra a queda dos gastos com a dívida ao mesmo tempo em que retrata o aumento dos investimentos sociais:
IHU On-Line - O que a dívida da Argentina revela sobre o funcionamento do mercado financeiro e da ação dos Estados em relação aos recursos nacionais?
Maria Lúcia Fattorelli - O exemplo argentino evidencia o imenso poder do setor financeiro privado no mundo atual; mostra como a corte suprema do país mais rico do mundo pende em defesa de um questionável fundo abrigado em paraíso fiscal, em detrimento de um país.
Em nosso livro Auditoria Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos, analisamos brevemente a concentração de poder, controle e propriedade dos negócios mundiais nas mãos do setor financeiro. Essa concentração brutal tem permitido a interferência desse setor em políticas e decisões governamentais estratégicas. Esse poderio financeiro sobre as nações é obtido, principalmente, por intermédio do financiamento de ditaduras ou de campanhas eleitorais “democráticas”, conseguindo, dessa maneira, dominar o poder político e subordiná-lo aos interesses do capital financeiro para, em seguida, alcançar as modificações das estruturas legais em seu favor e de acordo com os seus interesses.
Estamos vivendo a fase aguda do capitalismo financeirizado: a associação dessa brutal concentração de poder com a ausência de regulamentação financeira, exacerbando o domínio do setor financeiro e deixando sem limites a sua atuação.
No Brasil também assistimos esse processo, que inicia com financiamento de campanhas, seguido da adoção de modelo econômico e medidas que favorecem o setor financeiro, principalmente através do Sistema da Dívida. Estamos pagando dívidas ilegais e negando direitos sociais básicos. O Orçamento Geral da União de 2014 destina 42% dos recursos para juros e amortizações de uma dívida que nunca foi auditada, em flagrante violação àConstituição Federal de 1988, que determinou a realização da auditoria da dívida brasileira.
"Atualmente o setor financeiro ocupa uma posição extremamente privilegiada, atuando à vontade, com acesso a paraísos fiscais" |
IHU On-Line - Diante deste caso, como deveria ocorrer uma regulamentação do mercado financeiro?
Maria Lúcia Fattorelli - O setor financeiro deve existir para servir à economia real, e não o contrário. Atualmente o setor financeiro ocupa uma posição extremamente privilegiada, atuando à vontade, com acesso a paraísos fiscais, sigilo bancário e uma série de privilégios que protegem tanto as grandes instituições como os fundos abutres.
Algumas medidas já foram debatidas mundialmente, como a “taxa Tobin”, por exemplo, que prevê a taxação de cada transação financeira, a fim de identificar cada operação. Outras ideias relacionadas à exigência de transparência esbarram no privilégio do sigilo bancário. Há movimentos internacionais que lutam pelo fim dos paraísos fiscais, mas também esbarram no poderio financeiro instalado nas grandes potências.
Aqui na América Latina há um grande debate em andamento desde 2007, em favor de uma Nova Arquitetura Financeira Regional (NAFR), mas aqui no Brasil esse importante debate está muito atrasado.
A NAFR, tal como se desenvolve atualmente, se ergue sobre três pilares principais: o Banco do Sul (banco de desenvolvimento), o Fundo Comum de Reservas do Sul (fundo para a estabilidade monetária e taxas de câmbio) e oSistema Único de Compensação Regional de pagamentos (organização comercial).
O objetivo é alcançar uma maior autonomia econômica e financeira para favorecer o desenvolvimento sustentável soberano, em um marco de integração regional [1].
Um dos princípios da NAFR é a construção de um sistema financeiro regional soberano, democrático e transparente, orientado para um novo modelo de desenvolvimento, e que esteja a serviço das pessoas, de forma inclusiva e equitativa. Já foi aprovada pelos parlamentos de cinco países — Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela¬ —, mas ainda necessita de mais adesões.
IHU On-Line - Como a dívida da Argentina tem repercutido entre os diversos Estados? É possível identificar uma posição de algumas nações em relação à situação da Argentina?
Maria Lúcia Fattorelli - O Brasil e outros países da América Latina têm defendido uma solução diplomática para esta questão. Porém, o ideal seria que todos os países se unissem para avançar o processo de implantação de uma Nova Arquitetura Financeira Regional, bem como para realizar auditoria das dívidas, para investigar e trazer à luz como todas as dívidas foram contratadas e por que cresceram, assim como feito pelo Equador. Seria uma grande oportunidade dos governos responderem à altura contra esta humilhação imposta pelo capital financeiro.
IHU On-Line - Qual é a situação econômica da Argentina, considerando o altíssimo valor da sua dívida pública? Qual tem sido o impacto da dívida da Argentina no orçamento federal?
Maria Lúcia Fattorelli - O serviço (juros e principal) da dívida argentina tem tido um peso importante no orçamento público e tem aumentado aceleradamente a cada ano, principalmente devido à aplicação de taxas de juros vinculadas à variação do PIB.
IHU On-Line - A Argentina poderia ter evitado a sua dívida pública na proporção em que está? Como?
Maria Lúcia Fattorelli - Sem dúvida. A partir do respaldo contido na sentença judicial da “Causa Olmos” proferida no ano 2000, poderiam ter prosseguido com os trabalhos, realizado a auditoria da dívida e adotado medidas soberanas, como fez o Equador.
Ainda há tempo, pois os crimes cometidos por esse processo de endividamento ilegal e ilegítimo provocou danos sociais e humanos irreparáveis, que são considerados crimes de ação continuada, e não prescrevem.
NOTAS
[1] LEGEARD, Nathanaël (2011). Nueva arquitectura financiera para el desarrollo en América Latina y Ecuador. Universitas - Revista de Ciencias Sociales y Humanas, UPC, Ecuador, 14, pp 43-71, Enero/Junio. Disponível em:http://universitas.ups.edu.ec/documents/1781427/1792977/02Art14.pdf.
domingo, 27 de julho de 2014
Mudança de “Matriz Cognitiva”. Emancipação ou submissão?
“A
centralidade da intervenção biopolítica do capitalismo agora é compartilhado pelo Estado e as
corporações multinacionais, que interpelam os corpos e as subjetividades com a
linguagem de mercado, elaborando uma subjetividade de indivíduos adaptados aos
“circuitos integrados do capitalismo global””, escreve José Luis Bedón,
em artigo publicado por Rebelión,
23-07-2014. A tradução é do Cepat.
“Toda a sua vida foi assim. Uma sensação de
que algo não funciona no mundo. Você não sabe o que é, mas está aí, como uma
farpa cravada em sua mente e está enlouquecendo-o. [...] Matrix nos rodeia, está por todas as
partes, inclusive nesta casa [...] É o mundo que foi colocado diante dos seus
olhos para lhe ocultar a verdade. NEO: ‘Que verdade?’ MORFEU:
‘Que você era um escravo, assim como os demais, nasceu em um cativeiro... em
uma prisão que não pode sentir, saborear, nem tocar. A prisão de sua mente’”.
(Fragmento do diálogo entre Morfeu e Neo, “Matrix”: filme dos irmãos Wachowski,
1999).
Aproximação à Matriz Cognitiva do Capitalismo
Com eufemismo, alguns setores
tecnocráticos e acadêmicos denominam a sociedade atual como a “Sociedade do
Conhecimento” ou a “Economia do Conhecimento” (1). Em nosso meio adota-se o
nome de “Economia Social do Conhecimento” (2), e mais especificamente “Bio
Economia Social do Conhecimento” (3). Estes últimos implicariam em uma ruptura
com o novo modelo de acumulação emergente: o “Capitalismo Cognitivo”
(4). Ainda está para se observar se não são formas e matizes do mesmo Modo de
Produção ou sua possibilidade de subversão. É isto o que tenta abordar o
presente artigo.
A reestruturação do Capitalismo
Industrial Fordista (5)
e sua conversão ao Capitalismo do Conhecimento se dão historicamente como
consequência da dinâmica incorporação das tecnologias de informação e
comunicação, do desenvolvimento das novas tecnologias digitais-móveis e a
emergência da Web 2.0, que favorecem a conectividade, o hipertexto e a
interatividade. Irrompem com novas formas de acesso, apropriação e uso da
informação e do conhecimento, introduzindo profundas mutações sociais,
psicológicas, econômicas, políticas e culturais; configurando o que
genericamente denominamos a “Cibercultura” (6).
Para tentar uma aproximação com esta
dinâmica complexidade é necessário partir de algumas reflexões históricas e
materiais sobre a Internet, o principal meio de acesso ao
conhecimento (livros, laboratórios, experimentos, observações sistemáticas). A
facilidade com que milhões de pessoas no mundo podem aceder, a qualquer momento
e de qualquer lugar, ao conhecimento e ao saber, seja para o trabalho ou para o
ócio, tem uma materialidade muito concreta, que nasceu em 1960 com a DARPA (Defense
Advanced Research Projects Agency), do Serviço
de Investigação Avançada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, que queriam criar
um sistema de comunicação que resistisse até mesmo aos ataques nucleares. A DARPA conduziu à criação de uma rede descentralizada
que se chamou ARPANET, depois incluiu as universidades para
participar no desenvolvimento da rede informática. Em 1983, os militares
norte-americanos criam sua própria rede: MILNET. Em 1998, cria-se a Corporation
for Assigned Names and Numbers (ICANN),
que é a que assume até nossos dias as mais importantes decisões na
administração da Internet no
mundo e que depende do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, que
nomeia todos os seus membros.
Os treze grandes servidores da Internet que dão vida e suporte material para
esta tecnologia estão repartidos em mais de 170 países do mundo e são de
propriedade dos Estados Unidos. Ainda que se tente uma regulação por meio das
universidades, governos e empresas, a última palavra quem tem é a ICANN.
Com isso, os Estados Unidos são a única nação com poder para eliminar um país
inteiro da Internet.
Sobre esta gigantesca infraestrutura
proprietária, instalou-se o Capitalismo Cognitivo como a nova forma de
exploração (subsunção do trabalho intelectual) (7) do conhecimento (do
intelecto geral) (8) circulante na Internet. O conhecimento se tornou o insumo
fundamental e dinamizador do novo paradigma de acumulação e reprodução do
capital. A nova forma de apropriação e espoliação tenta a subsunção total da
vida, transformando a atividade relacional e as atividades sociais digitais em
relações econômicas e produtivas. A valorização do conhecimento se produz
mediante sua transformação complexa e não sequencial em “valor de troca” (9).
Este processo envolve a “subordinação da tecnologia, da cultura, da
subjetividade, da política e das relações sociais, em seu conjunto, ao ciclo do
capital”.
O filósofo Paolo
Virno vai mais além ao afirmar que o intelecto geral não apenas
é a principal força produtiva do capitalismo pós-fordista, mas, sim,
constitui-se a base material para estabelecer o Estado capitalista como
“sinistro monopólio da decisão política” (Virno,
2003).
O conhecimento criado e materializado
pela cultura humana é um “pró-comum” (10). A biotecnologia, a nanotecnologia,
os bens culturais ou intelectuais são bens comuns na era digital. A água, o
oxigênio, a luz solar, a biosfera são bens comuns naturais. Não tem dono
particular e pertencem em comum a todos os seres humanos. Porém, os donos da
tecnologia e das corporações capitalistas têm dispositivos legais e
coercitivos, como a Organização Mundial de Comércio (OMC),
para através da via dos Tratados de Livre Comércio ou pela nova divisão do trabalho
cognitivo global impor seus códigos de propriedade intelectual, a reforçada
legislação do “Copyright” (11), a privatização da Internet e a mercantilização da biodiversidade,
a bioprospecção e a “caçada de genes”, patentes e marcas sobre o software e
sobre a vida. As resistências globais a estas novas formas de violência
social-digital defendem uma Internet de
livre acesso, o “software livre”, promovem a propriedade comum sobre os bens do
conhecimento, o “Copyleft” (12) e as licenças “Creative Commons” (13).
O Capitalismo do Conhecimento envolve tudo o que é “pago”. As
grandes empresas globais obtêm o máximo benefício do valor simbólico, estético
e social que extraem dos processos de informação e conhecimento na rede.
Visualizemos as empresas da “Nova Economia” (14), as que eram conhecidas como
as “empresas ponto.com” (15), algumas das quais retornaram maduras e
experimentadas da bolha financeira do Nasdaq de 1997-2001. Entre outras, as
corporações mais reconhecidas como Microsoft e Apple-Macintosh subsomem trabalho intelectual para
criar e vender para todo o mundo seus sistemas operativos e programas digitais,
atuam no espaço do software pago;Intel, Samsung, Sony subsomem o trabalho intelectual para
fabricar equipamentos tecnológicos, sobre os quais, especialmente, programam
sua caducidade com o propósito de estimular a venda permanente de equipamentos
e toda classe de gadgets tecnológicos, operam no campo do hardware; Google (66,7% do mercado), Microsoft (18,1%) e Yahoo (11,2%) subsomem o trabalho
intelectual e ganham muitíssimos dólares oferecendo seus famosos buscadores de
internet; Facebook, Twitter ou Linkedin subsomem o trabalho intelectual
enlaçando a atividade relacional de milhões de usuários, seu espaço de
apropriação é a atividade de cérebro (Wetward),
o negócio destas empresas é a captação de dados para a segmentação de públicos
que, em seguida, são utilizados em bases de dados para o marketing ou a
vigilância global ciberpanóptica (16). Assim,
o novo paradigma econômico “tem como objeto de intercâmbio, acumulação e
valorização das faculdades vitais dos seres humanos, em primeiro lugar da
linguagem e da capacidade de gerar conhecimento”.
A eficácia das novas ferramentas
tecnológicas desencadeou uma mudança no sentido próprio da cultura e das
relações humanas. De uma memória cultural de arquivo, armazenadora,
mnemotécnica, passamos para uma memória cultural de processos, expansiva, uma Cultura
RAM em contraste
com uma Cultura
ROM, como metaforiza José Luis Brea com
o jargão informático. Uma cultura de interconexão ativa e produtiva de dados,
máquinas, cérebros, distribuídos e conectados em rede como uma constelação
fábrica (Brea, 2007), produzindo, criando riqueza por fora
de temporalidades e espacialidades, nutrindo a acumulação das novas indústrias
do pró-comum.
O Capitalismo do conhecimento, operando como uma
“Matriz” cognitiva, reticular, supratemporal, onipresente, relacional,
alienante, corrosiva... Um sistema fechado, no qual presos, somos sem saber,
sua frente de energia. Metaforicamente, como no célebre filme dos irmãos Wachowski,
estamos subsumidos em um sistema operativo, a um programa de programas, neste
caso, ainda que soe paradoxal, a um projeto de realidade não virtual, em que as
opções encapsuladas das pastilhas de Morfeu mostram
dois caminhos: a patilha azul: “fim da história” e o esquecimento de tudo, o
desfrutar do autoengano; a pastilha vermelha: para “descobrir até onde chega a
toca do coelho”, despertar, assumir a realidade e as consequências existenciais
da resistência à hegemonia das máquinas e sua Matriz, a Matriz do novo
capitalismo.
O capitalismo como sistema de
pensamento dominante, influenciando na subjetividade, ou seja: no modo de
pensar, sentir, atuar no mundo social, operando como processo psíquico,
atravessado por códigos e leis de uma cultura mercantil. A Matriz cognitiva capitalista construindo e modelando a
subjetividade em relação aos novos contextos sócio-técnicos e as “modalidades
de atenção” (17), que permitem à psicopedagoga argentina Alicia
Fernández concluir que “os tempos telemáticos atuais, os mundos
virtuais, a internet com a sua globalização, a informática em geral, os
videojogos e a televisão formam novas estruturas (“teletecnomediáticas”) que
modificam nossos modos de representação” (Fernández,
2011).
O capitalismo como modo de
subjetivação promove, segundo José Enrique Ema López, “um determinado vínculo
social, exatamente aquele que supõe o não estabelecimento de vínculos, a busca
do individual, do próprio prazer, na realidade, portanto, a desvinculação
social”, uma subjetivação “afim ou funcional à modalidade capitalista
imperante” (Ema López, 2009). O
capitalismo, como sustenta Paula Sibilia,
retomando Foucault, atuando como biopolítica, biopoder (18),
um tipo de poder que aponta à vida, produz, faz crescer, ordena, formata corpos
e almas para que se acomodem ao que o capitalismo requer (Sibilia, 2005).
A centralidade da intervenção
biopolítica do capitalismo agora é compartilhado pelo Estado e as corporações
multinacionais, que interpelam os corpos e as subjetividades com a linguagem de
mercado, elaborando uma subjetividade de indivíduos adaptados aos “circuitos
integrados do capitalismo global”. Um controle biopolítico de corpos
conectados, ávidos, ansiosos, úteis... como os que vemos no filme Matrix,
naquelas sombrias paragens distópicas (19), dominados pelas máquinas, nas
quais, apesar de sua vigilância, controle e disciplina, é possível o
desenvolvimento de novas formas de resistência através de novas formas de
subjetivação e de sujeitos despertos, que disponham de novas formas de ver,
entender e transformar o mundo.
Com as distâncias que cabem, Matrix é, para além da coerência ou não de
suas argumentações e de suas sequelas, um filme futurista que trata o tema da
desintegração social e as questões sobre o propósito e a legitimidade da
tecnologia e o poder. É uma metáfora poderosa do novo estatuto do saber e do
conhecimento em nossos dias, em que, como humanidade, somamo-nos ao limiar de
novas formas de submissão ou outras maneiras de emancipação. Com Baudrillard ou Zizek, poderíamos dizer... Bem-vindos ao Deserto
do Real!...
Marcas
de superfície da mudança da Matriz cognitiva no Equador
Na sexta-feira, 30 de maio de 2014,
encerrou-se em Quito a denominada “Cúpula
do Bem Conhecer”, organizada pelo tanque de pensamento
(TinkTank) “Flok Society”: um projeto que promove a “Sociedade
do Conhecimento livre e aberto”. A Cúpula é
um episódio a mais de uma série de ações sistemáticas que o governo desenvolve
e financia para mudar a “matriz cognitiva” e a matriz produtiva do Equador.
Os Ministérios de Coordenação do Conhecimento e o Talento Humano,
a Secretaria
de Educação Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (Senescyt)
e o Instituto
de Altos Estudos Nacionais (IAEN) assinaram, no dia 28 de novembro de 2013, o
Convênio interinstitucional para a implementação do projeto chamado “Futura Sociedade do Conhecimento, Comum e Aberta”.
A Flok
Society também é
integrada por um grupo de especialistas, “programadores e pesquisadores”,
hackers e ativistas sociais que participaram de diversas jornadas de
mobilização dos “indignados”, especialmente na Espanha, no denominado 15-M.
O Convênio subscrito pelas
instituições mencionadas obriga as partes a garantir os recursos econômicos
para a execução da Cúpula. Também se obrigam a dotar o projeto de
especialistas profissionais, coordenar e executar as fases de gestação,
incubação, desenvolvimento, preparação da Cúpula e a fase pós-Cúpula, esta
última para a elaboração, discussão, revisão e edição dos resultados da mesma.
No encerramento da Cúpula,
os relatores das 14 mesas, reunidas no Centro de Convenções Eugênio Espejo, em Quito, de
27 a 30 de maio, resumiram suas propostas e projetos em torno dos temas:
Recursos Educativos Abertos, Ciência Aberta, Cultura Livre, Agricultura Aberta
e Sustentável, Biodiversidade, Energia distribuída, Desenho aberto para a
fabricação industrial orientada ao pró-comum, dados e governo aberto, Marco de
políticas públicas e normativa para a economia social, Hardware livre e
Cibersegurança, Software Livre, TIC, conectividade e acessibilidade,
Territorialização do trabalho cognitivo e comuns urbanos, Saberes ancestrais e
diálogo de saberes.
Entre as mais relevantes propostas e
projetos das mesas da “Cúpula do Bem Conhecer”,
constam a criação de circuitos inteligentes para a aprendizagem, no marco do
novo modelo de gestão educativa, a dotação de ferramentas, repositórios e recursos
educativos abertos, a implementação do programa piloto de ciência aberta para a
educação inicial, campanha de sensibilização sobre a ciência aberta, promoção
de formas alternativas de gestão da cultura do pró-comum, a implementação de
novos sistemas agroalimentares com a primeira indústria de maquinaria livre na
população de Sigchos, província de Cotopaxi, uma proposta de
permacultura urbana para melhorar a qualidade de vida, a criação de um banco de
sementes ancestrais e troca de saberes, plano piloto de microgeração energética
de extração de óleo de palma para o uso de microprodutores locais, em pequena
escala e com manejo cooperativo, um laboratório nacional de tecnologias livres,
fortalecer o Instituto de Tecnologia Kichwa, Rede
de comunidades de Economia Social, desenvolvimento de sistemas
de inovação cidadã e a criação da comunidade de trabalho colaborativo do
conhecimento orientado para a independência tecnológica, Plano de comunicação
no uso de tecnologias livres e cibersegurança, comunidade de vigilância,
aplicação e migração ao software livre, Fórum Nacional permanente para uma Internet pública e segura que fomente as bandas
livres, Bici-Cidade
Ativa para o
desenvolvimento do conhecimento na mobilidade urbana, criação de um Código e
protocolo da propriedade intelectual comunitária...
Estas propostas, segundo o livreto,
deverão gerar para julho de 2014 uma dezena de documentos que servirão de base
para a transição à nova matriz cognitiva, assim como para a formulação de uma
legislação e o desenvolvimento de políticas de Estado em sincronia com o Código
Orgânico para a Economia Social do Conhecimento comum e aberto no Equador, que substituirá a Lei
de Propriedade Intelectual vigente
no Equador, desde maio de 1998, e cujo conteúdo adere às diretrizes da OMC.
Em princípio, nada parece ruim, até
se poderia concordar com as propostas, as aspirações e os projetos de aparência
louvável, mas a armadilha é complicada e está tecida a partir do poder. O pano
de fundo da Cúpula do Bem Conhecer é a transformação da matriz cognitiva
e da matriz produtiva, “uma revolução produtiva através do conhecimento e o
talento humano”, reitera-se nos meios de comunicação. Trata-se da “modificação
radical do modelo de acumulação e do modo de regulação da economia nacional”, afirma
um fragmento de texto encontrado no portal da “Cidade
do Conhecimento Yachay”.
A Secretaria Nacional de Planejamento e Desenvolvimento (Senplades),
que realizou o Plano Nacional do Bem Viver(PNBV), entende a mudança da matriz cognitiva como:
“Desenvolvimento endógeno, com vinculação estratégica ao Sistema-Mundo”. Caso
nos remetamos ao que sustenta o sociólogo estadunidense Immanuel
Wallerstein, que é um dos que desenvolve este enfoque crítico,
equipara-se o Sistema-Mundo com o que Lênin denominou
Imperialismo ou fase superior do Capitalismo. Wallerstein caracterizou
o Sistema-Mundo como uma série de mecanismos, regras e estruturas que
“redistribuem” os recursos a partir da “periferia” para o “centro” do império.
“Crer a priori que um país como Equador pode mudar o capitalismo é não ter os
pés sobre a terra. É preciso trabalhar no marco das possibilidades que dita a
economia política interna, para entrar na disputa a nível internacional que
urge e que é necessária para a integração latino-americana”. “Estamos
disputando, neste momento, uma grande transição”, disse entre outras
declarações o Secretário de Educação Superior, Ciência, Tecnologia e inovação
do Equador, René Ramírez, em uma entrevista concedida a Miguel
Aróniz e
publicada no portal de Rebelión.
Em outro momento da entrevista, também sustenta que “em
termos estruturais temos um sistema primário exportador e secundário
importador, com o qual o país não vai para nenhum lado. Para que exista uma
liberdade plena dos cidadãos tem que haver uma emancipação do pensamento. O
atual sistema castra a criatividade, a geração de ideias e se vê na crise que
viveu a América Latina e muitos países do sul que também viveram uma crise do
pensamento. Portanto, não haverá uma possibilidade de uma segunda
independência, uma emancipação social dentro do bem viver, caso não haja uma
revolução cognitiva”.
O Presidente da República, em uma entrevista
concedida ao jornal El
Telégrafo, no dia 15 de janeiro de 2012 (intitulada: O desafio
de Rafael Correa), disse também que “o modelo de acumulação nós não podemos
mudar drasticamente. Basicamente estamos fazendo melhor as coisas, com o mesmo
modelo de acumulação, antes que mudá-lo, porque não é nosso desejo prejudicar
os ricos, mas, sim, é nossa intenção ter uma sociedade mais justa e
equitativa”.
Na manhã do dia 17 de julho, o Equador e a União Europeia alcançaram
um acordo comercial que foi percebido e questionado pelos movimentos sociais
como um Tratado
de Livre Comércio com
a Europa, semelhante ao fracassado TLC com
os Estados Unidos. O Ministro de Comércio Exterior, Francisco
Rivadeneira, afirmou que depois de quatro anos de negociação
“todos os temas foram superados sem nenhum problema”. No entanto, acrescenta
que em relação a temas relacionados com a propriedade intelectual, “dentro do
contexto do acordo da propriedade intelectual de comércio, os europeus querem
se assegurar que continuaremos mantendo e que de nenhuma maneira geraremos
algum tipo de dificuldade ou obstáculo nesses assuntos”. Em princípio, a
afirmativa textual nega que “todos os temas foram superados sem nenhum
problema”, os europeus querem uma sujeição aos compromissos do Equador com a OMC e “não querem que sejam geradas
dificuldades e obstáculos a respeito do tema”... soa uma imposição.
Os negociadores equatorianos e o governo se viram
obrigados a cruzar a “linha vermelha” que constituía o tema da propriedade
intelectual, que obrigaria aos agricultores nacionais a utilizar “sementes
certificadas”, atingindo a produção agrícola de consumo interno e a soberania
alimentar, que frearia a indústria farmacêutica nacional e a perda de proteção
para a fabricação de princípios ativos de medicamentos.
Este acordo frearia também a proposta
do Código
Orgânico para a Economia Social do Conhecimento comum e aberto no Equador, que em teoria buscaria se
sobressair das imposições da OMC, continuando a respeitar os direitos de
autoria – que são parte dos direitos humanos reconhecidos pela Declaração
Universal das Nações Unidas -,
mas propiciar formas mais flexíveis e múltiplas de apropriação do conhecimento.
O acordo comercial com a União Europeia neste
ponto é transcendente, porque condicionaria o caráter da mudança da matriz
cognitiva e produtiva no Equador.
Então, perguntamo-nos: em que consiste a mudança da matriz
cognitiva e produtiva no Equador? É uma adaptação estratégica ao Sistema-Mundo
capitalista? É uma oportunidade de emancipação ou de submissão?
Fontes
documentais
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em 17-07-2014).
Notas
1. É a economia que utiliza o conhecimento como fator
fundamental da geração e acumulação de valor e riqueza.
2. Esta economia se basearia no conhecimento como bem
público comum, na qual interessa o valor de uso, maximizam-se as externalidades
positivas do conhecimento, valoriza-se a produção colaborativa do conhecimento,
reconhecem-se as diversas formas de propriedade intelectual e se distribuem
socialmente os benefícios do conhecimento.
3. É uma proposta que se apoia em um modelo de gestão que
inclui a geração de ideias criativas, seu aproveitamento potencial, produção de
bens e serviços e distribuição dos benefícios do “conhecimento comum, livre e
aberto”, acessível aos equatorianos, com o objetivo de maximizar seu benefício
social e democratizar as relações sociais e econômicas.
4. Sistema social que aproveita o conhecimento como um bem
privado, ao qual confere valor de mudança, maximiza suas utilidades e concentra
benefícios mediante o controle privado da propriedade intelectual, em um
contexto de produção competitiva.
5. Sistema de produção industrial em série, que buscava
controlar os tempos produtivos dos operários, reduzir os custos, expandir o
mercado e a circulação das mercadorias para maximizar a acumulação capitalista.
6. É a cultura emergente e em construção que provém dos
novos contornos sócio-técnicos propiciados pelas tecnologias de informação e
comunicação, as redes digitais e a Internet.
7. É a subordinação do trabalho intelectual em relação ao
capital, que ocorre por meio de procedimentos, ferramentas e tecnologias.
8. Termo alcunhado por Karl
Marx para
descrever a dimensão coletiva e social da atividade intelectual, quando se
trata de uma fonte de produção de riqueza.
9. Os produtos ou as mercadorias têm um “valor de uso”
porque foram criados para algo, tem um fim determinado, mas também tem um
“valor de troca” que é o que as confere o capitalista para poder vendê-las no
mercado, obter um valor maior, mais-valia.
10. Define-se assim aos bens comuns, bens comunais de
aproveitamento comum. Desta forma, nenhuma pessoa individual tem controle
exclusivo sobre o uso e a disposição de um recurso particular sob o regime de
pró-comum, ou seja, sem propriedade, nem regime de alienação ou exploração.
11. É o conjunto de normas jurídicas que afirmam os
direitos morais e patrimoniais que a lei concede aos autores. São os direitos
de autoria sobre obras literárias, artísticas, musicais, científicas,
didáticas, sejam publicadas ou inéditas.
12. É um exercício do direito de autoria que consiste em
permitir a livre distribuição de cópias e versões de uma obra ou outro
trabalho.
13. São licenças de direitos de autoria que outorgam
permissões ao público para compartilhar e usar o trabalho criativo sob os
termos e condições de seu autor.
14. Termo criado nos anos 1990 para descrever a evolução
de uma economia baseada na indústria do conhecimento.
15. Empresas e planos de negócios que
se conformam como companhias no negócio de Internet, entre 1995 e 2000, durante o auge do
e-business até a crise conhecida como a “Bolha.com”.
16. União de termos que fazem alusão ao controle e a
vigilância global por meio de meios digitais.
17. Com este termo, Alicia
Fernández procura
definir as dificuldades da aprendizagem nos tempos atuais. As modalidades de
atenção se constroem ao longo da vida de cada pessoa, propostas ou impostas
pela sociedade “teletecnomediática”. O contexto é texto a partir do qual se
atende, mais próximo à descentralização e dispersão criativa do que à
concentração. Desvitaliza a autoria de pensar.
18. Com este conceito, Michel
Foucault se
refere às diversas técnicas de controle do corpo e das populações pelos
estados. Paolo Virno vê o biopoder como uma necessidade do capitalismo para
controlar a força produtiva, ao ser uma potência abstrata e imanente no sujeito
produtivo.
19. Uma sociedade fictícia, indesejável em si mesma
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