GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in:
Anarchism and Other Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.
CASAMENTO E AMOR
EMMA GOLDMAN
A noção popular em torno do casamento e do amor é a de que eles são
sinônimos, que eles afloram das mesmas razões e preenchem as mesmas
carências humanas. Como tantas outras noções populares, também esta não
repousa em fatos concretos, mas sob superstições.
Casamento e amor não possuem nada em comum; estão tão apartados como
pólos; e de fato, são antagônicos entre si. Sem dúvidas, certos
casamentos são resultado do amor. Entretanto, não é porque o amor só se
afirma em casamento; é antes porque poucas pessoas conseguem superar
completamente uma convenção. Para um grande número de homens e mulheres
hoje em dia, o casamento nada é senão uma farsa, mas a ele se submetem
por amor à opinião pública. Em todo caso, enquanto é verdade que certos
casamentos baseiam-se no amor e enquanto é igualmente verdade que certas
vezes o amor continua durante a vida conjugal, eu sustento que isso se
dá independentemente do casamento e não devido a ele.
Por outro lado, é completamente falso que um casamento possa resultar
em amor. Um caso milagroso se faz ouvir, em raras ocasiões, de cônjuges
se apaixonarem depois de já estarem casados, mas num exame minuncioso
encontraremos aí um mero ajuste ao inevitável. Certamente a habituação
mútua estará bem distante da espontaneidade, da intensidade e da
beatitude do amor, sem os quais a intimidade do casamento se revelaria
degradante para ambos homem e mulher.
O casamento é em primeiro lugar um arranjo econômico, um contrato de
seguro. Só difere do contrato comum precisamente naquilo que este tem de
mais compulsório, de mais exigente. Os retornos são insignificantemente
pequenos se comparados ao investimento. Quando contratamos uma apólice
de seguro, pagamos por ela em dólares e centavos, mas sempre nos resta a
liberdade de descontinuar o pagamento. Contudo, se o
prêmio do seguro for um marido
,
a mulher pagará por isso com o seu nome, com a sua privacidade, com a
sua auto-estima e com sua própria vida “até que a morte os separe”. Além
do que, o contrato do casamento a condena a uma dependência vitalícia,
ao parasitismo, a completa inutilidade individual bem como social. O
homem paga também a sua parte, mas como sua esfera é maior, o casamento
não o limita tanto como à mulher. Ele sente suas correntes pesarem mais
num sentido econômico.
E assim o mote do Inferno de Dante se aplica ao casamento com a mesma força. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.
Somente alguém coompletamente estúpido negaria que o casamento é um
fracasso. Basta relancear a vista sobre as estatísticas do divórcio para
compreender como é verdadeiramente amargo um casamento fracassado.
Tampouco o argumento filisteu estereotipado, o da lassidão das leis do
divórcio e o da crescente frouxidão da mulher, dará conta do fato de
que: em primeiro, cada décimo segundo casamento termina em divórcio;
segundo, que desde 1870 os divórcios cresceram de 28 para 73 a cada
população de cem mil; terceiro, que o adultério, desde 1867, como causa
do divórcio cresceu 280.7 por cento; quarto, que a deserção aumentou em
369.8 por cento.
Somado a estes números surpreendentes, há ainda um vasto material dramático e literário melhor elucidando o assunto.
Robert Herrick, em
Together; Pinero, em
Mid-Channel; Eugene Walter, em
Paid in Full,
e dezenas de outros escritores estão discutindo a aridez, a monotonia, a
sordidez, e a inadequação do casamento como fator de harmonia e
entendimento.
O estudioso social sério não se contentará com a superficial desculpa
popular para este fenômeno. Ele terá de escavar a vida mesma dos sexos
profundamente adentro para conhecer o porque de o casamento revelar-se
tão desastroso.
Edward Carpenter diz que, por detrás de todo casamento, persiste uma
ambiência vitalícia dos dois sexos; ambiências tão diferentes entre si
que homem e mulher permanecem estranhos. Separados por uma muralha
intransponível de superstição, costume, e hábito, o casamento não tem a
potencialidade de desenvolver o conhecimento e o respeito mútuo, sem o
que toda união está destinada ao fracasso.
Henrik Ibsen1, o inimigo de toda farsa social, foi provavelmente o
primeiro a conceber esta grande verdade. Nora largou o marido, não
porque – como queria a crítica estúpida – estaria cansada de suas
responsabilidades ou sentia a necesidade dos direitos da mulher, mas
porque veio saber que, durante oito anos convivera com um estranho e
agora deu a luz a uma criança sua. Pode haver qualquer coisa de mais
humilhante, de mais degradante do que a proximidade vitalícia entre dois
estranhos? Não é preciso que a mulher conheça nada do homem, salvo sua
renda. Quanto ao conhecimento da mulher – o que há para se conhecer
exceto se ela possui uma boa aparência? Não superamos ainda o mito
teológico de que a mulher não possui alma, que ela é meramente um
apêndice do homem, feita de sua costela apenas para sua conveniência,
este que de tão forte ficara com medo da própria sombra.
Porventura da má qualidade do material, donde a mulher tornou-se
responsável por sua própria inferioridade. Em todo caso, mulher não tem
alma – o que há para se conhecer nela? Além do que, quanto menos alma
tem uma mulher, maior seu tino para esposa, o mais prontamente irá
absorver-se ao marido. É essa servil aquiescência à superioridade do
homem que manteve a instituição do casamento aparentemente intacta por
um tempo tão longo. Mas agora que a mulher está vindo a si, agora que
ela está cada vez mais consciente de si como um ser exterior à graça do
mestre, a sagrada instituição do casamento gradualmente vai sendo
minada, e nenhum bocado de lamentação sentimental poderá evitá-lo.
Quase que desde a infância, é dito às garota comuns que o casamento é o seu objetivo final; portanto seu treino e sua educação
têm de
ser direcionados para esse fim. Como a besta muda na engorda, vai sendo
preparada para o abate. Mas para ela, estranho dizer, é permitido
conhecer muito menos sobre sua função como esposa e mãe do que para o
artesão comum sobre seu ofício. Para uma garota respeitável, é indecente
e imundo conhecer qualquer coisa da relação marital. Oh, pela
incoerência da respeitabilidade, requerer votos de casamento para tornar
algo imundo no mais puro e sagrado arranjo que ninguém ousa questionar
ou criticar. Mas é exatamente esta a atitude do entusiasta comum do
casamento. A futura esposa e mãe é mantida na mais completa ignorância
em torno de sua única inclinação no campo competitivo — o sexo. E assim
ela entra numa relação vitalícia com um homem para ver-se chocada,
repelida e ultrajada além da medida por seu instinto mais saudável e
natural, o sexo. É seguro dizer que uma grande percentagem da
infelicidade, miséria, aflição e sofrimento físico do matrimônio se
devem à ignorância criminosa em matéria de sexo que anda sendo exortada
como uma grande virtude. Tampouco é de todo um exagero quando digo que
devido a este fato deplorável, mais de um lar foi desfeito.
Entretanto, se a mulher for livre e grande o bastante para aprender
sem a sanção do Estado ou da Igreja o mistério do sexo, será condenada
como absolutamente imprópria para ser esposa de um “bom” homem, sua
bondade consistindo de um cérebro vazio e uma carteira cheia. Poderia
haver alguma coisa mais ultrajante do que a idéia de que uma mulher
saudável, em plena idade, cheia de paixão e vida, ter de negar as
exigências da natureza, ter de reprimir seu desejo mais intenso, minar
sua saúde e quebrantar seu espírito, ter de aturdir sua visão e
abster-se da profundidade e da glória da experiência do sexo, até que
venha um “bom” homem para tomá-la como esposa? É precisamente isto o que
significa o casamento. Como poderia um arranjo como este terminar
exceto em fracasso? Este é apenas um fator, embora não o menos
importante, que diferencia o casamento do amor.
A nossa era é prática. O tempo em que Romeu e Julieta arriscaram-se à
fúria dos pais por amor, em que Gretchen expõs-se ao falatório dos
vizinhos por amor, já era. Se, em raras ocasiões, pessoas jovens se
permitem à luxúria do romance, em seguida os mais velhos cuidam para
que, após pregados e martelados, se tornem “sensatos”.
A lição moral instilada na garota não é a de se o homem arrebatou o
seu amor, mas: o “Quanto?”. O único Deus importante da vida prática
americana: o homem consegue ganhar a vida? Consegue sustentar uma
esposa? Esta é a única coisa que justifica o casamento. Gradualmente
isto de todo satura o pensamento da garota; seus sonhos já não são de
luares e beijos, risos e lágrimas; agora sonha em ir às compras e às
boas pechinchas. Tal sordidez e pobreza da alma são elementos inerentes à
instituição do casamento. O Estado e a Igreja aprovam esse ideal e não
outro, simplesmente porque esse é o ideal que necessita que o Estado e a
Igreja controle homens e mulheres.
Indubitavelmente há as pessoas que continuam considerando o amor
superior a dólares e centavos. E isto é particularmente verdade para a
classe daqueles cuja necessidade econômica forçou a que se
auto-sustentassem. A tremenda mudança na posição da mulher operada por
este poderoso fator é, de fato, fenomenal quando refletimos que há só um
curto período desde o ingresso da mulher na arena industrial. Seis
milhões de mulheres assalariadas; seis milhões de mulheres com direitos
iguais aos homens de serem exploradas, roubadas, ir à greve, e
ai, até mesmo de passar fome. Algo mais,
my lord?
Sim, seis milhões de trabalhadoras em todas as ocupações, desde o mais
elevado trabalho intelectual até as minas e ferrovias, até mesmo
detetives e policiais. Com certeza a emancipação está completa.
Apesar disso tudo, só um número muito pequeno do vasto exército das
mulheres trabalhadoras enxerga o seu trabalho como situação permanente,
na mesma luz que um homem o faz. Não importa quão decrépito seja este
último, ele foi ensinado a ser independente, a se auto-sustentar.
Oh,
eu sei que ninguém é verdadeiramente independente em nossa moenda
econômica; e mesmo o espécime mais miserável de homem odeia ser um
parasita; ou, em todo caso, pelo menos ser reconhecido como tal.
A mulher considera transitória sua posição como trabalhadora, a ser
deixada de lado pelo primeiro pretendente. É este o porque de ser
infinitamente mais difícil organizar mulheres do que homens. “Porque
devo me filiar a um sindicato? Vou me casar, ter um lar”. Ela desde a
infância não foi ensinada a enxergar isso como sua convocação última?
Ela aprende cedo o bastante que, apesar de não tão grande como a prisão
de uma fábrica, o lar tem portões e grades ainda mais sólidas. Possui um
guardião tão fiel que nada lhe pode escapar. A parte mais trágica,
entretanto, é que o lar não a liberta da escravidão assalariada; apenas
aumenta seus afazeres.
De acordo com as mais recentes estatísticas submetidas diante de um
Comitê “em torno do trabalho, salários e congestão da população”, apenas
em Nova York, dez por cento das trabalhadoras assalariadas são casadas,
ainda que continuem no trabalho mais mal pago do mundo. Some a esta
visão horrível o peso do serviço doméstico e o que resta da proteção e
da glória do lar? Como matéria de fato, até a garota classe-média não
pode falar sobre um lar seu no casamento, desde que é o homem que cria
sua esfera. Não é importante se o marido é um bruto ou um doce. O que
desejo provar é que o casamento só garante um lar à mulher pela graça do
marido. Ela gira em torno do lar
dele, ano após ano, até que
sua visão de vida e de relações humanas se torne tão rasa, estreita, e
tediosa, como seu entorno. Pouco admira se ela vir a ser resmungona,
trivial, arengueira, faladeira, insuportável, e expulsando assim o homem
da casa. Se ela quisesse, não poderia ir; não há lugar para onde ir.
Além do que, um curto período de vida conjugal, de completa rendição de
todas as faculdades, incapacita absolutamente a mulher comum para o
mundo exterior. Ela se torna indiferente à aparência, desajeitada em
seus movimentos, dependente em suas decisões, covarde em seu julgamento,
um fardo e um aborrecimento, cuja maioria dos homens cresce para odiar e
desprezar. Atmosfera maravilhosamente inspiradora para o desenrolar da
vida, não?
Mas e a criança, como será protegida sem o casamento? Afinal de
contas, não é esta a consideração mais importante a se fazer? A farsa, a
hipocrisia! O casamento protegendo a criança, mas centenas de crianças
abandonadas e sem lar. O casamento protegendo a criança, mas orfanatos e
reformatórios lotados, a Sociedade pela Prevenção de Crueldade a
Criança ocupadíssima resgatando as pequenas vítimas dos pais “amorosos”,
para colocá-las sob cuidados aindamais amorosos, como os da Gerry
Society2. Oh, mas que pilhéria!
Pode até ser que o casamento leve o cavalo até a água, mas conseguirá
fazer com que a beba? A lei coloca o pai na detenção, veste-o com
uniforme penitenciário; mas alguma vez matou a fome de seus filhos? Se o
pai não tem emprego, ou se oculta sua identidade, o que faz então o
casamento? Invoca a lei para levar o homem à “justiça”, colocá-lo em
segurança atrás dos portões fechados; seu trabalho, no entanto, não vai
para criança, mas para o Estado. A criança só recebe uma memória
enferrujada das listras do pai.
Com relação à proteção da mulher — aí reside a verdadeira maldição do
casamento. Ele não as protege em absoluto, e essa idéia mesma é tão
revoltante quanto um ultraje e um insulto à vida, tamanha degradação
ele promove à dignidade humana, que se declara para sempre esta
instituição como parasitária.
Bem como aquele outro arranjo paternalista — o capitalismo. Rouba os
direitos do homem, aturde seu crescimento, envenena seu corpo, o submete
à ignorância, à pobreza, à dependência, e então vai e promove caridades
que vingam sobre os últimos vestígios do auto-respeito humano.
A instituição do casamento faz da mulher uma parasita completa, uma
dependente absoluta. Incapacita-a para a luta da vida, aniquila a sua
consciência social, paralisa a sua imaginação, e então vai e concede sua
graciosa proteção que na realidade é meramente uma armadilha,
travestida de caráter humano.
Se a maternidade é a mais elevada realização da natureza da mulher,
que outra proteção exigiria além de amor e liberdade? O casamento só
contamina, ultraja, e corrompe esta realização. Não é ele que diz à
mulher: somente darás à luz se me seguires? Não é ele que a degrada e a
humilha quando ela se recusa a vender-se junto com seu direito à
maternidade? Não é o casamento apenas uma sanção para a maternidade, até
mesmo quando a criança é concebida por ódio, por compulsão? Mas quando a
maternidade é fruto da livre escolha, do amor, do êxtase, da paixão
desafiante, não é o casamento que vai e encrava uma coroa de espinhos
numa cabeça inocente e grafa em letras de sangue o epíteto hediondo de
Bastardo? Posto que o amor contivesse o casamento todas as virtudes
alegadas, seus crimes contra a maternidade bastariam para excluí-lo
eternamente do reino do amor.
Amor, o mais forte e mais profundo elemento de toda a vida, o
anunciador da esperança, da alegria, do êxtase; amor, o desafiador de
todas as leis, de todas as convenções; amor, o libérrimo, poderosíssimo
modelador do destino humano; como pode uma força que a tudo compele ser
sinônimo daquela pobre erva daninha gerada pela Igreja e o Estado, o
casamento?
Amor livre? Como se o amor pudesse ser de outro modo que não livre! O
homem comprou cérebros, mas todos os milhões de cérebros do mundo
fracassaram em comprar o amor. O homem subjugou corpos, mas todo o poder
na terra foi incapaz de subjugar o amor. O homem conquistou nações
inteiras, mas todos os seus exércitos não conseguiram conquistar o amor.
O homem agrilhoou e acorrentou e o espírito, mas é absolutamente
indefeso diante do amor. Do alto dos trono, com todo o esplendor e a
pompa que o ouro pode comandar, o homem ainda é pobre e desolado se o
amor não o perpassa. Mas quando o amor permanece, o casebre mais pobre
irradia calor, cor e vida. E assim, o amor possui o poder mágico de
tornar um mendigo em um rei. Sim, o amor é livre; não pode habitar outra
atmosfera. Em liberdade se dá sem reservas, abundantemente,
completamente. Todas as leis nos estatutos, todos os tribunais do
universo, não podem arrancá-lo da terra, uma vez que o amor finque suas
raízes. Entretanto, se o solo é estéril, como poderia o casamento
fazê-lo fruir? Seria como a última luta desesperada da fugacidade da
vida contra a morte.
O amor não precisa de proteção; ele é sua própria proteção. Tão logo
vidas sejam geradas pelo amor, nenhuma criança é desertada, passa fome
ou vontade de afeto. Que isto é verdade, eu o sei. Conheço mulheres que
se tornaram mães em liberdade dos homens que amaram. Poucas crianças na
relação aproveitam o cuidado, a proteção e a devoção que a maternidade
livre é capaz de conceder.
Os defensores da autoridade temem o advento da maternidade livre, com
receio de que ela roube suas vítimas. Quem combateria nas guerras? Quem
geraria a riqueza? Quem faria o papel do policial, do carcereiro, se a
mulher se recusasse à reprodução indiscriminada de crianças? A raça, a
raça! – grita o rei, o presidente, o capitalista, o padre. A raça deve
ser preservada, embora a mulher degradada à mera máquina reprodutora — e
a instituição do casamento é a nossa única válvula de segurança contra o
pernicioso despertar sexual da mulher. Mas em vão todos estes esforços
frenéticos para perpetuar um estado de sujeição. Em vão, também todos os
éditos da Igreja, o enlouquecido ataque dos governantes, em vão, até
mesmo os braços da lei. A mulher já não quer mais tomar parte na
reprodução de uma raça de seres humanos doentis, débeis, decrépitos,
miseráveis, que não possuem nem a coragem nem a força moral para se
libertarem de seus fardos de pobreza e escravidão. Pelo contrário, ela
deseja ter poucas crianças, mas crianças superiores, geradas e criadas
no amor e pela livre escolha; não por compulsão, como imputa o
casamento. Nossos falsos-moralistas ainda têm de aprender o profundo
senso de responsabilidade com a criança que o amor em liberdade
despertou no seio da mulher. Seria melhor renunciar para sempre a glória
da maternidade do que dar à luz numa atmosfera onde só se pode respirar
destruição e morte. E se ela se torna mãe, é para dar à criança o mais
profundo e o melhor que seu ser pode oferecer. Crescer com a criança é
seu mote; e ela sabe que somente desse modo é que pode ajudar a
construir a verdadeira masculinidade e feminilidade.
Ibsen deve ter vislumbrado uma mãe livre, quando, num golpe de
mestre, retratou Ms. Alving3. Ela foi uma mãe ideal por superar o
casamento e todos os seus horrores, por romper suas correntes, e
libertar o espírito para
voar, até que uma personalidade, regenerada e forte, lhe retornasse.
Ai!
Foi demasiado tarde para recuperar sua alegria de viver, seu Oswald;
mas não demasiado tarde para compreender que o amor em liberdade é a
única condição para uma vida bela. Aquelas que, feito Ms. Alving, que
pagaram com sangue e lágrimas por seu despertar espiritual, repudiam o
casamento como uma imposição e uma pilhéria sem graça, de baixo nível.
Elas sabem que apenas o amor, quer dure apenas um breve espaço de tempo
ou dure pela eternidade, é a única base criativa, inspiradora e elevada
para uma nova raça e para um novo mundo.
Em nosso presente
estado pigmeu, para a maioria das pessoas,
o amor é, de fato, um estranho. Incompreendido e evitado, raramente
finca suas raízes, e quando o faz, tão logo seca e morre. Suas fibras
delicadas não suportam o
stress e a tensão do cotidiano
maçante. Sua alma é complexa demais para ajustar-se à trama viscosa de
nosso tecido social. O amor lamenta, sofre e chora por aqueles que dele
precisam, mas carecem da capacidade de elevar-se aos seus cumes mais
altos.
Um dia, um dia homens e mulheres se elevarão, eles alcançarão o pico
da montanha, se encontrarão grandes e fortes e livres, prontos para
receber, partilhar, e refestelar-se nos raios dourados do amor. Que
fantasia, que imaginação, que gênio poético pode entrever, ainda que
aproximadamente, as potencialidades de tal força na vida dos homens e
mulheres. Se o mundo alguma vez dará à luz a verdadeira união e
companheirismo, não será o casamento, mas o amor a concebê-lo.
Notas do Tradutor:
1. Henrik Ibsen (1828-1906), literato escandinavo conhecido por
sua tendência anarquista-individualista. A autora faz uma análise mais
demorada da obra de Ibsen em seu livro “
The Social Significance of the Modern Drama”. N. do T.
2. Referência a
New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, reconhecida como a primeira instituição devotada à “proteção do menor” nos E.U.A., em atividade desde 1874.
Gerry Society é um outro modo de referir-se à mesma instituição. N. do T.
3. Ms. Alving é personagem de Ibsen na obra “
Ghost”, uma análise desta obra e desta personagem encontra-se em livro já mencionado. N. do T.
Texto original: GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in:
Anarchism and Other Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.
Tradução: José Paulo Maldonado de Souza